A malabarista
Em meio aos moinhos dos ventos uivantes, que insistiam em arrastar consigo todos os filhos desta terra que apenas queriam amar e viver em plenitude, ele ainda sorria com silenciosa complacência aos irmãos que com maior dificuldade se seguravam em qualquer base que julgavam sólida, em meio àquele mundo que parecia desfazer-se em pó de ilusão. Nada, em absoluto parecia realmente existir, constituindo em nossa volta uma dança etérea, dum mundo que emanava uma ideia estática de existência. Os prédios apareciam e desapareciam muito rapidamente, e devido a tamanha rapidez a maioria das pessoas não podiam perceber esse fenômeno, entregando-se por inteiro às coisas que dê sólidas detinham apenas a aparência.
Sorrisos, gritos, movimento, velocidade, pensamentos, sentimentos compunham uma turba que bradavam suas canções confusas pelas ruas de concreto, ferro e asfalto, em seus peitos traziam um coração calado, oco pela falta de si. Em suas mentes a pândega de sombrios avejões, não lhes permitiam um breve momento de silêncio, mas ele apenas observava, observava seus irmãos e a si mesmo, sem permitir-se a participar da algazarra de fantasmas na sua e nas demais cabeças. O dia estava belo, o sol parecia sorrir imponente acariciando a pele de seus filhos, com amor e delicadeza, a grama verde contrastava com o cinza das construções frias do homem, e abrilhantavam com a magnitude de sua existência aquela irrealidade de paredes mortas. O céu havia se vestido na garbosidade do seu mais lindo traje azul, e a lua já nos guardava com seu sorriso serenamente maternal. O inverno chegara docemente!
Entre as formas matemáticas dos edifícios que tentavam tolamente arranhar os céus, e os símbolos sagrados que procuravam esconder sua falta de substância por trás dos seus profundos significados místicos, encobrindo a profanação da vida que abrigavam em seu interior. Onde o cheiro da ganância, da soberba e da corrupção quase se misturava a amônia da urina que banhavam os becos. Entre todo este contraste o amor era lembrado, ora com saudade, ora como a ponta de uma clava a rasgar o peito. Mas o amor era a lei, e o alimento do ser. Ele ouvia um amigo contar-lhe sobre o sofrimento causado pela confusão nos sentimentos de alguém que se ama, e como esta pode despertar um desejo de vida, frente à ilusão da nostalgia, e unia-se ao outro para mostrar-lhe que a dor existe, mas apenas pelo desejo de voltar ao que não mais é, e a expectativa de vivenciar o que apenas brilha no porvir, fazendo-nos esquecer do que há no agora. Unia-se a todos, para poder aproveitar ao máximo aquele momento único, que é eterno exatamente por ser finito, e absorver tudo o que se pode de cada instante. Estava permitindo-se apenas ser.
Olhava com espanto o remoto tempo, em que andou em meio às ruas escuras. Observava com atenção as imagens que chegavam-lhe a mente e mostravam-no cenas do seu ser desfazendo-se por aquelas mesmas ruas hoje tão belamente iluminadas. Era como se dele brotasse também a luz que abraça toda a existência, alegrava-se por não mais tomar parte no barulho infernal, que a sua mente insistia em chegar. Sorria calmamente, enquanto as vozes das pedras em seu redor lhes diziam; “Entrega-te aos teus caminhos misteriosos, e aceita as fagulhas que lhe queimam, pois disso não passam, fagulhas, e como tais logo se apagam e perdem a vivacidade, não podendo mais cegar-te os olhos ou ferir-lhe a carne, esse é o fluxo. Ignora essas fagulhas e acenda o fogo dos teus olhos”.
Desceram do ônibus, e foram andando pelas ruas que levam ao mar, pelo caminho se via gente de todo o mundo, andando lado a lado, vivendo o mesmo momento respirando o mesmo ar, e amando sobe o mesmo sol, a areia espessa de Copacabana mostrava, formas e contornos tão diferentes, porém que formavam uma única coisa, uma única nação, um universo constituídos por diversos mundos distintos. O mar cantava solenemente enquanto num ritmo calmo vinha beijar a face da terra. O milagre da vida pulsava dos seios das moças e dos rapazes descontraídos sobre a areia, compondo com tudo o que é natural a grande sinfonia da vida.
Ao chegarem ao lugar da festa se misturaram aos outros que se entregavam ludicamente à música que mais uma vez mostrava que existia com o intuito de lavar a alma dos homens, e fazê-los entender que assim como as notas uniam-se para formar algo harmonicamente maior, os seres uniam-se uns aos os outros para tornarem-se parte de um todo tão imenso que a compreensão não podia perceber sua imensidão, mas a sua potência e beleza emanavam de todas as notas, de todos os olhos, existiam entre as bocas que uniam-se num beijo, e pulavam dos lábios que se abriam em sorrisos, tudo era sagrado, pois ali estava o amor, em cada feixe de luz que beijava tudo ao redor.
Em meio à fumaça e ao suor, em meio aos sorrisos e abraços, ela surge voando pelos ares, talvez vinda do céu, pois o mesmo azul celestial cobria-lhe o dorso, talvez fosse filha do sol, pois o mesmo fogo que dava vida aos seres deste mundo emanava de sua pele, seus olhos grandes eram duas ametistas cintilantes, em seus cabelos trazia a negrura da noite, pulava no ar corria de um lado a outro sobre as cabeças dos que dançavam pelo chão, sorria e dançava com graça e ousadia, todos os que a viram quiseram ter com ela, e por apenas um momento sentir o fulgor queimar-lhes a pele, tentaram segurá-la enquanto estava voando livremente, mas a menina de pele morena incandescente e de olhos esmeralda apenas se ria para eles, e deliciava-se com o enorme alvoroço que causava nos presentes, no seu peito explodia alegria.
Olhou para o poeta mudo que também voando, divisava sua figura com olhos pedintes, aproximou-se lentamente e afogou-lhe a cabeça, sorriu para ele enquanto se afastava peralta ainda voando sob os céus iluminados, voltou e o abraçou, entregando sem pedir nada em troca o afeto que muitos se negam dar, beijou-lhe os lábios e acariciou a face, sempre com um sorriso angelical, fazendo-o lembrar que a existência vibra em graça em todos os momentos, pegou-o pela mão e o levou-o para voar mais alto fazendo as nuvens, as estrelas e a lua de malabares, enquanto entoava seu canto de cura. “Seria um anjo? Uma fada? Um ser divino que viera lhe curar de toda a ilusão transitória que gerava a dor?” Amaram sob a luz das estrelas, ela contou-lhe segredos e sorriu, depois afastou-se graciosamente deixando para ele uma alegria sem par, por estar vivo e por voltar a voar, antes de partir devolveu-lhe as asas sem pedir nada, apenas pelo prazer de despertá-lo para a vida e lembrar-lhe que esta corria entre seus dedos enquanto se consumia.