250-A PRISÃO DA MULA SEM CABEÇA-Fantasmagórico

Aconteceu na semana-santa de um ano qualquer, no tempo em que se acreditava em Lobisomens, no Saci-Pererê e na Mula-Sem-Cabeça. Um grupo de rapazes, estudantes nas faculdades da capital, de férias, na Praça da Matriz, inventava maneiras de passar o tempo nos dias de pasmaceira de Sapetarepê.

— Pombas, essas procissões são uma encheção de saco. Já fui na de segunda, terça e quarta.. — Moacir reclama por ter acompanhado as procissões, quando, na verdade, fora mais para paquerar as mocinhas da cidade. — Os sermões são sempre a mesma coisa.

— Também, queria o quê? Faz dois mil anos, é sempre assim. — Leo confirma a monotonia dos ritos católicos.

— Amanhã é sexta-feira da paixão, nem a zona funciona. Que merda! — Luizinho é freguês das casas de putas e tem a língua solta. Dá uma cusparada na calçada. — Dizem que na madrugada de sábado da aleluia aparece a Mula-Sem-Cabeça.

— Besteira. Besteira igual a essas ladainhas das marias-beatas.

O grupo reúne meia dúzia de rapazes: Luizinho, Ramon, Rubens, Benito, Rui e Leandro. Incréus, como convém a todos os estudantes, dispostos a qualquer movimento para aborrecer os mais velhos e causar escândalo na pequena cidade.

— A gente podia pegar essa mula. Prender a bicha. Já pensou? Um bicho sem cabeça botando fogo “pelas ventas”, como dizem. Presa ali no cercado ao lado da cadeia.

— Voceis sabem que ela, além de deitar fogo pelo pescoço, pode matar quem lhe mostrar as unhas ou os dentes?

— Mais besteira. Gente, vamos mudar de assunto? — Na proposta de Leandro notam-se indícios de medo e respeito pelo sobrenatural.

— Pois a gente devia, sim, pelo menos ficar vigiando, e se a bicha passar, a gente prende ela.

— E depois cobramos entrada pra quem quiser ver a aparição.— Rui Elias, filho de Nagib Elias, já pensa como tirar lucro da aventura.

Entre propostas mirabolantes, acertos e desacertos, os rapazes chegam a um acordo. Sabiam, de antemão, de todos os detalhes da lenda. No folclore da cidade, tornava-se realidade nas madrugadas de Sábado Santo, antes dos sinos anunciarem a Ressurreição. Diziam os entendidos que a mula tinha um caminho determinado: entrava na cidade pela Rua do Ingazeiro, que seguia reta até a Praça da Matriz. Ali, zurrava por uns momentos e prosseguia caminho, saindo pelo outro lado, pela Rua Zé Prequeté, que se transformava na estrada de chão que unia Sapetaperê a São Roque da Serra. Esse percurso era inalterado, garantiam os que acreditavam sem ter visto.

— E como vamos prender a Mula?

— É simples. — Rui Cagliostro, cujo pai tinha uma vasta biblioteca, sabia de tudo. — Ela empaca quando encontra o sinal do Cinco Salomão e...

— Peraí! Que negócio é esse de cinco salomão? — Pergunta Moacir.

— É o pentagrama, a estrela de cinco pontas. Quando ela vê um, colocado à sua frente, ou desenhado no chão, empaca e vira nos cascos.

Entre discussões, esclarecimentos, medos e atrevimentos, planejaram tudo em detalhes. Na noite da Sexta-Feira da Paixão, quando a cidade toda se recolhia, obedecendo ao rito tradicional, os rapazes puseram-se em ação. Traçaram o símbolo do Cinco Salomão em todas as ruas que davam acesso ou permitiam a saída da cidade. Menos aquela da Rua do Ingazeiro, pela qual a Mula-Sem-Cabeça costumava entrar (como era “tradição” da aparição). Não avisaram a ninguém, pois a empreitada, além de secreta, era do maior perigo e poderia suscitar confusão na cidade.

Isto feito, esconderam-se numa casa abandonada, bem no início da rua do Ingazeiro. Ficaram aguardando, em vigília, a chegada da besta-fera.. Que apareceu: botando fogo pelo pescoço, aberto numa goela do diabo, lançando chispas ao bater as ferraduras de ouro sobre as pedras irregulares das calçadas. Zurrava mais do que uma tropilha reunida . Uma coisa de meter medo em qualquer crente.

Pelas frestas das janelas olhares afoitos e apavorados acompanhavam o tropel da aparição, cobrindo os olhos com as mãos envoltas em panos, e as bocas cerradas sob lábios apertados. Que a Mula não visse nem o branco dos olhos, nem das unhas, nem dos dentes, o que era fatal para quem os exibisse.

Conforme o combinado, assim que a aparição medonha entrou pela rua, cuspindo fogo, Rui correu até o meio da rua e traçou no chão o pentagrama. Depois, acompanhou os companheiros, que seguiam de longe o animal-monstro-fastasma ou seja lá o que fosse.

A aparição, zurrando, iluminando as ruas estreitas com seu facho vermelho, produzindo um escarcéu medonho, troteou pelas ruas de costume, chegou até a Praça da Matriz, e prosseguiu pela Rua Zé Prequeté. Ali, deparando-se com o pentagrama traçado no chão, empacou. Voltando nos cascos, insana por deparar com o signo que lhe impunha limites, procurou saída por onde entrara. Inutilmente, pois lá também estava o sinal barrando o caminho. Tentou outras ruas, mas todas estavam marcadas com a estrela. A Mula-Sem-Cabeça estava presa no povoado.

Como é sabido de todos, o encanto da Mula-Sem-Cabeça termina à meia-noite. Contam os entendidos que a maldição sobre a mulher que se transforma no fantasma da mula é para toda a vida, mas ela só se manifesta às sextas-feiras, e começa ao anoitecer e termina à meia-noite. Nessa hora, a magia se desfaz e a mulher, sempre casada, volta ao leito conjugal. O marido, nesse meio-tempo, permanece inconsciente, sem saber o que ocorre com sua mulher.

Naquela noite, em algum lugar, um marido iria acordar de seu estupor à meia-noite e daria pela falta da mulher, a qual, incorporada na Mula-Sem-Cabeça, estava presa pela força do símbolo mágico, na pequena cidade de Sapetaperê.

E a Mula? Sem saída, cheia de raiva, furiosa como nunca se viu assim, voltou para o centro da cidade. Os rapazes que armaram o aprisionamento do medonho ser estavam, agora, apavorados. Mantinham as bocas cerradas e as mãos nos bolsos das calças ou dos paletós. Sabiam que era morte certa se mostrassem os dentes ou as unhas. As pálpebras semicerradas. O ataque é fatal: as chamas expelidas pela garanta hiante atingem o indivíduo, afligindo a pior das mortes, qual seja, pelas chamas.

Na praça, já perto da meia-noite, o sacristão estava na torre, preparando o sino para a badalação que aconteceria dali a algumas horas, ao amanhecer do Sábado da Aleluia. Não se deu conta da vinda do monstro, que, ao ver os olhos esbugalhados, as mãos (e unhas) expostas, a boca aberta num grito mudo de terror, dá um salto fenomenal, batendo com as ferraduras na platibanda da torre (as marcas das ferraduras estão lá, gravadas para sempre) e expele uma baforada mortal contra o serviçal da igreja. O homem se incendeia e despenca da torre, uma chama viva cortando o céu noturno.

Muitas pessoas testemunharam a morte do sacristão. A barulheira do zurrar medonho da fera e a correria dos moços que prepararam a confusão tinham acordado a cidade. Olhavam pelas frestas de portas e janelas, temerosas de se exporem à fúria da fera ensandecida. A Mula voltou a procurar a saída da rua cercada com o pentagrama. Era uma rua sem calçamento, um areal cobrindo a saída, de um lado a outro. O sinal mágico havia sido riscado na areia fina. A mula estacou e, agindo com a inteligência dos malditos, lançou sobre o sinal um sopro descomunal de chamas. A força do ar deslocado aplainou a areia onde a marca detinha a fera. A areia fina ficou lisa como um lençol passado a ferro de brasa.

Não tendo mais o sinal que lhe travava saída, lá se foi, aos pinotes. Envolvia de labaredas infernais e de suas zurradas a Noite da Ressurreição.

ANTONIO ROQUE GOBBO

BELO HORIZONTE, 24 DE OUTUBRO DE 2003

CONTO # 250 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 24/06/2014
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