237-DESPERTAR
DESPERTAR
Acordou nu, enrolado num lençol. Deitado sobre a grama, sentiu as pontas do capim arranhando-lhe as orelhas, o rosto e o nariz. Virou-se. A luz do sol quente do meio-dia feriu-lhe os olhos. Fechou-os instintivamente. A luz amarela do astro foi substituída por faíscas violáceas, verde-bílis e negras de sua tremenda dor de cabeça. Um martelo pesado arrebentava seus miolos em pancadas cadenciadas.
Puxou o lençol sobre a cabeça. Sentiu o fedor e adivinhou a imundície do pano. Procurou lembrar-se. Um escuro total foi a resposta. Olhou por entre um rasgão do tecido fino. Viu bancos de cimento, arbustos, plantas rasteiras. Elevou o ângulo da visão até os galhos e as copas das árvores. Além da folhagem e da rua deserta, pôde ver o edifício branco, com sinais de decrepitude, que lhe pareceu familiar. Uma sirene estridulou, machucando de novo seu cérebro doente. A ambulância chegou à porta do edifício, a sirene morrendo lentamente.
— É um hospital. Mas que hospital? — Pensou.
Um par de sapatos brancos caminhou até perto de seu rosto.
— Que porre! Além de tudo, está nu! — Uma voz feminina, reprovadora e ao mesmo tempo carinhosa. — Fique quieto, doutor. Vou buscar ajuda para cuidar do senhor.
Sapatos Brancos se afastou. Reunindo forças, levantou-se, enrolou na cintura e entre as pernas o pano pardo de sujeira. Num esforço hercúleo, correu dali, na direção oposta daquela tomada por Sapatos Brancos.
Entrou inopinadamente num bar: um boteco cheio de gente tomando bebidas, conversando e rindo. Figuras descarnadas, saídas dos quadros de Portinari. Imundície era a característica do local: o chão sujo de barro vermelho, as garrafas, copos, o balcão, tudo coberto por uma poeira milenar, tumular. Teias de aranha pelos cantos e pendendo do teto. Todos emudeceram à sua entrada. No fundo do bar, sentada a uma mesa, enroscada em si mesma, os pés encolhidos sob as pernas e as mãos escondidas sob a coxas, os seios debruçando-se sobre o decote e cabelos desgrenhados, estava uma mulher quase conhecida: uma de suas antigas namoradas, de quarenta anos atrás? Sorriso brejeiro e olhar sedutor. Convidativos.
Dirigiu-se para a moça, segurando desajeitadamente o pano nas ancas com a mão esquerda.
— Oi, querida! Há quanto tempo, hein? Cida, não é mesmo?
Ela ofereceu-lhe os lábios. Inclinando-se para a jovem, está prestes a beijá-la, quando nota que não é mais ela, Cida, e sim o irmão dela, Tião. O cara que o jurou de morte por namorar a irmã.
Pula para trás, tremendo de asco e de medo. O lençol cai-lhe aos pés. Os fregueses arreganham os lábios sem pele, as gengivas descarnadas. Debocham dele em risadas fantasmagóricas. .
— Tão rindo do quê? Nunca viram homem pelado? — E fez um gesto obsceno para a turba, que se aproxima ameaçadoramente. Sua voz era pastosa e alterada. Sentia-se ressaqueado e ainda bêbado, tudo ao mesmo tempo.
— Aí, véio, a ressaca tá braba, hein? Pudera! O doutô passou o carnaval inteiro bebendo!
— Mais respeito! Tenho a cabeça branca, mas não sou velho porra nenhuma. Só não digo minha idade que é pra não falar número obsceno. Saibam que tenho setenta menos um!
Aproxima-se o Zico Lenga-Lenga: é um zé-coitado, que vive de fazer pequenas entregas e dar recados.
— Quer que avise dona Leonora? — Prestativo, oferece seus serviços. — Vou num pé e volto noutro. — Antes que tenha uma resposta, um dos homens descarnados grita lá do fundo do bar:
— Num adianta. Ela foi passar o carnaval na fazenda do Luca Lobão.
Uma voz feminina e gorda grita do outro lado:
— Cuidado com os chifres, doutor! O Luca traça todas que vão à sua fazenda.
Fingindo não ter escutado os insultos, dirige-se ao dono do bar:
— Posso usar o telefone?
— Tá lá no fundo.
Entra num salão sombrio, com uma mesa de sinuca no meio. No centro da peça, as bolas arranjadas em triângulo, iluminadas pela única luz, cujo quebra-luz dirige para as curvas coloridas das bolas. Em um canto, mais escuro ainda, está o telefone antigo, de manivela, pregado à parede. Toca a manivela. Coloca o auricular no ouvido.
— Telefonista?
Aproxima-se do bocal. Quer falar o número, mas sua memória é um branco total ou um buraco negro. O bocal do telefone transforma-se numa bocarra negra, dentre brancos, gengiva e língua vermelhas e dá uma gargalhada.
Apavorado, deixa cair o auricular. Enquanto o telefone se transforma na cabeça de um negro forte, vestido de branco, que lhe agarra o braço. Ouve a voz de Sapatos Brancos.
— Deita o doutor aqui na mesa.
Ele resiste, sabe o que lhe está destinado. Mas o negrão é forte, domina-o e o lança sobre a mesa. O impacto sobre as bolas duras machuca-lhe as costas. Elas rolam sobre o pano verde, batem nas beiradas ou caem nas caçapas. Fecha os olhos, tentando se esconder do pavor que brota do mais negro de sua memória.
— Pressão? — Pergunta, autoritária, Sapatos Brancos.
— Dezoito por dez — Responde o Negrão.
— Batimentos cardíacos?
— Cento e oitenta e aumentando.
— Me dê a seringa.
Ele abre os olhos. Vê, pela primeira vez, o rosto de Sapatos Brancos: é a professora de educação física do grupo escolar, a terrível Dona Mangerona. Os cabelos na narina fremem e os olhos faíscam de prazer incontido pelo que está fazendo.
— A seringa! Rápido!
Inclina-se, derramando sobre seu rosto os peitos fartos, pesados. Na sua mão direita, erguida, aparece uma seringa, a agulha grossa, gotejante.
O pavor atávico — oriundo de épocas jurássicas, quando dinossauros eram caçados com dardos de poderosos entorpecentes, por cientistas vindos do futuro distante — subiu pela garganta e estourou num grito que expandiu pelo recinto e reverberou além das paredes do tempo e do espaço.
— NÃÃÃÃÃÃÃÕOOOOOO !
Acordou. Nu, envolto por um lençol imundo. Virou-se. A luz do sol quente do meio dia feriu seus olhos.
ANTONIO ROQUE GOBBO =
S. PAULO, 16/AGOSTO/2003
CONTO # 237 DA SERIE MILISTÓRIAS