226-HISTÓRIA EM BRANCO E PRETO

225 — HISTÓRIA EM BRANCO-E-PRETO

Zé Negrinho assim era chamado, embora não se lembrasse. Teve um ataque que o deixou prostrado na beira do canavial. Era a terceira vez que ficava assim, estrebuchando no chão, até perder a consciência. Foi encontrado logo depois do meio-dia, o corpo estirado sob o sol forte. Algumas moscas zoando pela sua cabeça e formigas já se aproximavam. Dito Piquera e Dedé Socó acudiram o homem, levaram-no para sua tapera, ali perto, onde morava com a companheira Nhá Terência.

— Deita ele aqui na cama, vou fazer um angu móde pô no peito dele. Já teve dois ataque ansim, ele vorta. Pode dexá.

Nhá Terência fazia como fora mandado pela Fia Curandeira, raizeira, costurava "mau-jeito" e dores de todos os tipos. No seu conhecimento de ervas, pós, rezas e simpatias, a velha fazia de tudo e muito mais do que os médicos da cidade.

Zé não despertou de sua inconsciência, apesar da cataplasma e outras simpatias.

— O jeito é levá ele pra cidade, vê o que tá acontecendo com ele. — Nhá Terência estava desanimada.

Os vizinhos, solidários, se apresentaram para ajudar a pobre mulher. Fizeram um jirau com um longo pau roliço e lençol amarrado, no qual colocaram o amigo desfalecido. Já escurecia quando Dito, Dedé, Menergildo e Ladislau se puseram a caminho, revezando-se no transporte de Zé Negrinho.

— Não carece de Nhá Terência ir junto, agora. Nóis chega lá e leva ele pra Santa Casa e a senhora vai amanhã cedinho. Leva outra muda de roupa pra ele. — Menergildo tranqüilizou a mulher, que não sabia o que fazer, tão desorientada estava.

A cidade ficava cerca de duas léguas. Os homens saíram de tardezinha, as sombras já iam encompridando. A noite os surpreendeu no meio do caminho. O medo também.

— Pra mim, já tá morto. - cochicha Dito para Ladislau. Vão à frente, alumiando o caminho com uma tocha feita de panos velhos amarrados num pedaço de cabo de vassoura, embebidos em querosene.

— É, num tá nem respirando mais.

Antes, bem antes de chegarem ao Rio Liso, já têm certeza de que Zé Negrinho não era mais gente viva, e sim defunto que merecia o maior respeito. Passaram a caminhar silenciosos, ouvindo os próprios passos, olhando desconfiados para as sombras que se transformam, no negrume da noite, em figuras ameaçadoras.

Carregar defunto em rede, noite a dentro, é coisa de meter medo no cristão mais corajoso. Pensa Menergildo. E lá vão os cinco: quatro caminhantes e o defunto, rumo à cidade.

Não muito longe da cidade corre o Rio Liso, que na verdade é um córrego raso, manso, de leito arenoso. Pois não é que Ladislau acha de tropeçar e deixar a rede cair justo quando atravessavam o rio? Tudo não teria passado de um susto, se não fosse a dificuldade em levantar a rede do rio, pois o defunto começou a se mexer, e levantou-se, embaraçado na rede e no jirau, causando um grande alvoroço. Quando viram a rede se erguendo do córrego, o lençol molhado grudado no corpo do Zé Negrinho, os quatro carregadores não pensaram em mais nada senão fugir.

Zé Negrinho se desembaraçou da rede. Na escuridão da noite, não percebe a situação. Os carregadores desapareceram e o “defunto” não compreende o que aconteceu. Todo molhado, não se lembra de nada nem entende patavina. Sai do meio do córrego mas tomba logo na margem. Não sabendo para onde seguir, pois a noite é negra como asa de urubu, deixa-se ficar à margem do rio, onde passa a noite.

No dia seguinte, acorda e toma rumo do caminho que se estende à sua frente. Segue a trilha sem mesmo saber onde vai dar. Sua cabeça zunindo, não se lembra de nada, nem da própria identidade. Quando chega, vem precedido por avisos dados pelos carregadores, cuidado, gente, é um morto que voltou do outro mundo. Uma notícia terrível, tão ruim, da qual ninguém duvidou.

Zé Negrinho perdeu a memória. Nhá Terência pediu Luiz Lontra, cabra corajoso que não acreditava em coisas do outro mundo, buscar o Zé, o qual, não se lembrando de nada, recusou-se a acompanhar Luiz Lontra. Aliás, não tinha mais a mínima idéia de que se tratava de um amigo. Ficou zanzando pela cidade. Esmolando. Dormindo ao relento, debaixo de árvores e de marquises. Esmolambando-se.

Dizem que “preto, quando pinta, tem mais de cento e trinta”. Quando o trágico acontecimento levou Zé Negrinho à desmemória, a carapinha era ainda bem negra. Agora, tantos anos depois, estava com a cabeça completamente branca, uma lã alva encaracolada, num branco sujo, encardido. Tanto tempo passara que o povo de São Roque da Serra já tinha esquecida sua malfadada história. Zé Negrinho perdeu até o nome. Sem memória e sem destino, ficou sendo a triste figura do Preto Véio. A criançada o achacava, pessoas piedosas lhe davam esmolas. Arrastando-se pela cidade, Preto Véio virou lenda. Algumas histórias corriam, de mais puro terror, associando Preto Véio a almas do outro mundo, ao velho-errante que jamais morria (confundido, sem dúvida, ao eterno Judeu Errante), e até ao fantasma de Maria Engomada, que habitava as campas do Jardim Novo, onde, outrora, fora cemitério.

— Foi ele que judiou de Mariazinha, a santinha que morreu de tanta pancada, lá na curva do jequitibá. — O fantasma da menina morta a cacetadas aparecia, segundo testemunhas confiáveis, toda primeira sexta-feira do mês, no Jardim Novo. Trajando brancas vestes, era uma aparição silenciosa, que rondava somente a imensa praça ajardinada. Mesmo assim, os moradores ao redor da praça tinham medo da aparição.

Ultimamente, após muito anos do assassinato da menina, surgia um boato que ajuntava as aparições fantasmagóricas de Maria Engomada à figura bem real de Preto Véio.

— Pois isso é sina de alma danada. O Preto Véio tá destinado a perambular pelo mundo por toda a vida. Por conta das maldades que praticou em vida.

E para dar mais fé à má crença popular, para adicionar uma pitada a mais de terror, Preto Véio passou a dormir no cemitério. Cercado de grades na parte da frente, por muros de alvenaria pelos três lados, com algumas partes destruídas pelo tempo e talvez por outros elementos, tinha fácil acesso aos que se atrevessem a ali permanecer. Pois foi o que aconteceu com Preto Véio. Entrou e se aboletou num mausoléu antigo, de família tradicional.

— É mentira dessa gente. Num tem ninguém dormindo aqui dentro, não senhor! — O zelador do cemitério negava com veemência. Periga eu perder o emprego, se encontrarem o Preto Véio aqui dentro. — Sabia, sim, que o desmemoriado passava as noites no cemitério. Mas, cadê coragem para enfrentar a situação, ir ao mausoléu à noite, escorraçar o pobre coitado?

Alguns maus elementos da cidade (rapazes e homens-feitos, ociosos por devoção e bandidos por vocação) deram em implicar com o Preto Véio e com as histórias que circulavam a seu respeito. Formaram um grupo, uma quadrilha, para esclarecer de vez a relação de velho molambo ambulante com Maria Engomada. Marcaram uma noite na qual seria certa a aparição do fantasma da virgemenina.

— Vamos ao cemitério pegar o Preto Véio, levamos ele pro Jardim Novo e esperamos a Maria Engomada. Vamos ver a reação do negro. — Foi o plano proposto por Romão, o chefe da quadrilha.

— Vou trazer uma garrafa de pinga. Vamos dar pinga pra ele, assim ele fica mais animado. — Prometeu outro do bando.

A primeira sexta-feira de outubro decorreu em sombras. As primeiras chuvas se anunciavam mas as nuvens, prenhes de chuva, se arrastaram durante o dia todo, por um céu turvo, escuro. Ao anoitecer, prenunciava-se uma noite tormentosa, com o vento levantando poeira das ruas e tirando das amendoeiras as últimas folhas, que subiam aos céus em redemoinhos constantes.

— Vamos deixar pra outra ocasião? — Temeroso, sugeriu um dos quadrilheiros.

— Não, tá tudo preparado pra hoje. Não pode passar desta noite. — A ordem veio de Romão. De fato, tudo estava preparado para aquela noite. Inclusive uma aparição real, uma armação da qual apenas Romão e seu primo Diogo Gadelha sabiam. Haviam combinado que, quando chegassem ao Jardim Novo, trazendo o Preto Véio, Gadelha, escondido na figueira, faria sua aparição: enrolado em lençóis, gemendo e uivando, iria abraçar o velho. Romão era um cético, não acreditava em fantasmas e queria ter a certeza da confrontação do Preto Véio com a lenda criada a seu respeito.

A noite cresceu em vendavais, nuvens pesadas ameaçavam desaguar a qualquer instante. Escuridão de breu, já clareada por raios e relâmpagos. As ruas ficaram desertas logo ao escurecer, ninguém se atrevia a perambular ao léu, ante a iminência de formidável tempestade. O Bar do Centro fechou as portas antes das nove, tão logo o bando de Romão (eram cinco) saiu, após os últimos tragos de conhaque e cachaça. Foram direto ao cemitério. Na frente, tudo escuro, as luzes apagadas. Deram a volta pelos fundos, entraram por uma brecha no muro e se encaminharam, com determinação, ao mausoléu onde, sabia-se, dormia Preto Véio. Pelo campo santo podiam-se ver, aqui e ali, claridades fantasmagóricas, fogos-fátuos emanados das sepulturas; ouviam-se os tilinlins das plaquetas metálicas numeradas, fincadas sobre sepulturas recentes. Nada disso atemorizou os cinco homens, que, pisando sobre covas e sepulturas, arrastaram o pobre negro para fora do campo santo. Uma garrafa de cachaça apareceu nas mãos dos homens, que misturaram suas bicadas aos goles forçados goela abaixo do arrestado. O homem não piou nem tugiu. Não ofereceu qualquer resistência. Foi conduzido como eram levados os animais ao altar dos sacrifícios.

Ao se aproximarem do Jardim Novo, começou a respingar chuva: grossos pingos, patacões de água que batiam nos chapéus e capotes com força.

— Diacho. A chuva vai estragar tudo. — Romão preocupava-se com o êxito da empreitada.

Relâmpagos amiudavam-se. Trovões contínuos enchiam a noite de sons cavos, profundos, terríveis. Os raios caíam por perto, estalando como chicotadas de um açoite gigantesco. O preto não ajudava, teve de ser arrastado, com esforço de seus seqüestradores, embriagados pelo álcool e pela sandice. Chegaram a uns dez metros da figueira. Estacaram, sob o comando de Romão.

— Parem aí. Vamos esperar que apareça a Maria Engomada. — Falou aos gritos, a fim de ser ouvido, acima dos ribombos, pelo comparsa Diogo. Ouvindo a sentença que era a senha, esse saltou de chofre de um galho da árvore, ao mesmo tempo em que emitia um gemido pavoroso. O gemido, entretanto, foi superado pelo troar da tempestade e pelo chicotear de um raio numa alta palmeira imperial, a poucos metros da pavorosa encenação.

O clarão iluminou a cena de horror: o fantasma ergueu-se e agitando os braços, disparou numa carreira veloz, na direção do grupo, não se sabe se para atemorizá-los ou para fugir do pavor telúrico instalado na praça. Os homens do bando fugiram, cada qual por si, deixando o preto ajoelhado. Nele tropeçou o “fantasma”, embolando-se numa confusão de lençóis, braços, pernas, corpos que se abraçavam. O preto agarrou-se fortemente ao fantasma, talvez já na vasca da morte, segurando Diogo pelas pernas,impedindo-o de escapar. A cena (quem tivesse coragem, poderia ver com clareza) era iluminada pelo tronco em chamas da grossa palmeira: o preto e o branco agarrados, estendidos no chão, que se transformava num lodaçal.

Os amigos fanfarrões sumiram da cena. Romão ainda tentou reunir forças com Tonin Bigode.

— Vamos voltar lá, ver o que aconteceu.

— Tá louco, Romão? Cê num viu a Maria engomada agarrar o Preto Véio?

A chuva desanimou o bando.O temporal os dispersou. Cada qual voltou para sua casa. A noite prosseguiu sob o temporal feroz. O Rio Liso encheu, transbordou, arrastou casebres da margem. Telhados foram desfeitos, roupas esquecidas em varais sumiram nos redemoinhos. Noite de pavor, de gemidos, soluços, clamores. Ribombos e estalos fantásticos, inexplicáveis. Os habitantes, trêmulos de medo, ouviam e sentiam o pavor da noite. Queimavam palmas bentas, com invocações:

— Santa Bárbara nos proteja! São Jerônimo, valei-nos!

O dia seguinte amanheceu límpido como nunca: céu lavado, de um o azul jamais visto, o sol claro ferindo a vista de quem se atrevesse a olhá-lo de frente. O chão ensopado, as ruas enlameadas. As árvores pingando por todas as folhas e rebentos. Os habitantes madrugadores que atravessaram o Jardim Novo, na direção da Padaria Boa Quitanda, depararam-se com algo estranho, tétrico e inexplicável. Além do tronco negro da palmeira imperial, atingida pelo raio, debaixo da grande figueira, dois corpos emaranhavam-se no barro. Preto Véio (que todos conheciam) agarrado ao corpo de um homem (que alguns identificaram como Diogo Gadelha), no meio de um lençol. Sinais de luta: os corpos haviam, com certeza, se engalfinhado... numa briga?

Detalhes se revelavam aos que se aproximavam para examinar com cuidado a cena : Diogo estava carbonizado, mais preto do que o Preto Véio, cuja carapinha, molhada e aplastada ao crânio, parecia algodão-doce se derretendo. Sua pele apresentava inexplicáveis tons cinza-pálido, estrias claras, quase brancas. .

— Virgem Nossa! Cruz Credo, Avemaria !— exclamou alguém. — O branco virou preto e o Preto Véio virou branco!

ANTONIO ROQUE GOBBO =

BELO HORIZONTE, 10 DE JUNHO DE 2003 =

CONTO # 226 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/06/2014
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