217-O COCHE FÚNEBRE
217 — O COCHE FÚNEBRE
São Roque da Serra, 1920
Dentre os inúmeros transtornos causados pela mudança do cemitério (1), estava a distância do novo campo santo do centro da cidade, e, principalmente, do bairro mais populoso, a Tabiquinha. A posição do cemitério antigo era bem mais confortável, principalmente no momento difícil do enterro. Situado em pleno centro da cidade, entre a Igreja Matriz e a Igreja de Santa Efigênia, cercada por ruas de terra encascalhada, mantidas limpas do mato por constantes capinas feitas pelo coveiro do cemitério, estava numa situação cômoda para os enterros.
Na triste hora de sepultar os entes queridos, a família e os amigos passaram a ter mais uma atribulação: o transporte do caixão através da cidade, passando pelos trilhos da estrada de ferro para chegar, uns quinhentos metros além, ao novo cemitério. Era um percurso que durava mais de hora. Os enterros passaram a ser menos concorridos: nos momentos que precediam o início do féretro, grande parte dos homens saía de mansinho. Além da lonjura, a obrigação do revezamento no pegar das alças do caixão tornava a jornada final um suplício para muita gente.
Para não falar nos pobres coitados que vinham das fazendas e sítios, trazendo os mortos em redes, que já chegavam exaustos à cidade.
— Nunca vi cemitério tão longe assim! E pra quê? O cemitério velho era tão bem localizado!
— Ara, Arlindo, deixa de sê besta. Num vê que, depois da gripe espanhola, aquele lugar ficou contaminado? Aliás, já tava lotado, não cabia mais defunto.
— É mesmo, cumpadre Mirola. O prefeito até mandou fazer aquelas gavetas. Mas num deu certo, o cheiro já empestava a cidade. Dava pra sentir de longe.
— É o progresso. A cidade tá crescendo. Carecia de novo cemitério, não há dúvida.
Na esteira do progresso que causou a mudança do cemitério, veio a solução para o problema do traslado dos defuntos. Chico Miranda, dono da Marcenaria e Carpintaria Miranda & Filhos, único fabricante de caixões de defuntos, viu logo a oportunidade de um novo negócio. Reuniu os filhos e explicou a idéia:
— Vai ser um bom negócio quem organizar um serviço de transporte de caixões e defuntos. Vamos construir um coche especial para este transporte.
— Homessa! Como não pensamos nisso antes? — Marcílio, o filho mais velho, atilado e ambicioso, agarrou a idéia no ar. — É claro que a cidade precisa desse serviço. Vamos começar hoje mesmo.
Se o pai tinha a visão, Marcílio tinha a ação. Logo procurou a ferraria dos Mieterrauds, hábeis serralheiros franceses, aos quais foi encomendada toda a parte de metal da carruagem. Em pouco mais de um mês, o coche ficou pronto. Elegante carruagem toda fechada, medindo três metros de comprimento, com portas na parte traseira para colocar e retirar o caixão com facilidade. Nas laterais, três pequenas vidraças, protegidas por cortinas negras. A alta boléia tinha pegadores que ajudavam o cocheiro a subir e descer com facilidade e elegância. Na parte superior, além da coberta de madeira, foi agregado um pálio de sedoso tecido negro, aumentando a imponência e dignidade do veículo. Quatro cavalos, todos de pelagem escura (havia um totalmente negro, que atendia pelo nome de Tição) puxavam o coche As quatro rodas altas davam segurança, não permitindo balanços e baques, ainda que transitando por ruas esburacadas e sobre os trilhos da estrada de ferro.
— Temos de ajustar um homem para ser cocheiro e cuidar dos cavalos.
— Tem o Zeca Gargalhada. Faz anos que ele cuida das tropas do Teles.
— Bem lembrado. Mas não é sério pro nosso serviço. Vive com a boca escancarada, dando risadas por qualquer motivo.
— Ora, isso é o de menos. A gente explica que, durante o transporte dos defuntos, tem de ficar sério. Depois, cuidando do coche e dos cavalos, poderá rir o quanto quiser.
Zeca Gargalhada foi o homem certo para o trabalho. Inclusive sabia trajar a roupa feita sob medida para os enterros. Vestindo um terno preto de alpaca brilhante e a cartola sedosa, também feita sob encomenda, o debochado cuidador de cavalos era transformado no elegante cocheiro. Um chicote fora colocado num suporte no lado direito da carruagem, sempre à mão para ser usado sobre os cavalos. Nunca foi usado, pois os animais obedeciam com presteza às ordens verbais e aos curtos assobios do condutor.
O sucesso do negócio foi imediato. Mas o preço ajustado era alto, só possível para os enterros de gente rica ou remediada. Fora do alcance das classes menos favorecidas, dos sitiantes, das famílias de pouca renda. E nem todo dia morria gente rica. Pelo contrário. A morte sempre teve uma preferência em visitar os pobres e os desafortunados. Invariavelmente, quando o caixão encomendado à oficina era simples, barato, a família não tinha recursos para pagar o transporte no coche, que era considerado, pelo preço, um serviço de luxo.
Foi novamente a visão de Marcílio Dias que entreviu outro seguimento do negócio.
— Vamos fazer esse serviço, também. O caixão será transportado numa charrete simples, puxada só por um cavalo. Podemos cobrar bem menos.
Compraram uma charrete que estava praticamente sem uso, na mesma oficina dos franceses. Simples cabriolé de duas rodas, um estrado sem artifícios e a boléia para um só condutor.Os metais pintados de preto, as madeiras envernizadas com capricho, eis a nova carruagem pronta e em serviço sem grandes problemas. Zé Gargalhada era também encarregado da direção da charrete. Por ser um serviço mais simples, não trajava o terno preto nem a cartola. Usava uma roupa escura, camisa aberta no peito e calças de brim encorpado. O percurso era feito com mais rapidez, quer pela agilidade do veículo, quer pela demanda, pois naqueles tempos em que morria muita gente, vítima da gripe espanhola, havia grande demanda de caixões e do respectivo transporte. Nos dias em que mais de um enterro era realizado, o serviço deveria ser rápido e eficiente, pois era muito procurado, tanto o para defuntos ricos quanto para os pobres.
Acontecia também de ser combinado o transporte de defuntos a partir dos sítios e fazendas, substituindo as redes carregadas por equipes de quatro ou mais homens, dependendo da distância a ser percorrida.
Certa ocasião, Zeca Gargalhada foi acordado de madrugada pelo seu Marcílio.
— Zeca, leva um caixão desses mais simples, mas bem grande, na fazenda dos Gomides. Cê espera o velório, e de tarde tráz o defunto para o enterro na cidade.
Quando o sol raiava, Zeca chegou à fazenda, após mais de duas horas de viagem. Aguardou até pelas dez horas da manhã, entre cochilos e doses de café forte (e até duas talagadas de branquinha).
Lá pelo meio-dia, o caixão foi colocado no cabriolé. Os familiares e amigos se adiantaram, para esperar a chegada do pranteado defunto à entrada do novo cemitério. Durante o longo percurso da volta, o sol inclemente ardia na nuca do cocheiro.No trajeto da estrada, que cortava morros e passava por espraiados dos córregos e ribeirões, havia silêncio e marasmo do ar. Zeca Gargalhada cochilou por diversas vezes. A fome mordia seu estômago. Tição seguiu impávido pelo único caminho a seguir, rumo à cidade.
Ao entrar na cidade, curiosos se postaram nas portas e janelas para ver o cabriolé negro, com olhares surpresos . Zeca estava cansado e sonolento, mas o movimento da cidade avivou sua atenção. Incitou o corcel negro, que passou a trotar com vivacidade.
— Tição tá esperto, nem tá sentindo a carga. E olha que o defunto é bem pesado, pensou, dirigindo a carruagem pelas ruas que iam terminar no cemitério.
Ao passar sobre os trilhos, a charrete passou com facilidade.
— Ôa, Tição, devagar. Nem parece que tá carregando defunto!
Chegaram, finalmente, à porta do cemitério. Zeca puxou as rédeas. Tição estacou com um relincho. O grupo que aguardava a chegada do esquife fechou-se em torno da charrete. Jonas Gomides, filho do defunto aguardado, foi o primeiro a estranhar:
— Uai, seu Zeca, cadê o caixão com o corpo do pai?
Zeca se vira com agilidade. Olha para a parte traseira da charrete, onde devia estar o caixão. Completamente vazia!
Sem saber o que dizer, completamente atordoado pelo calor, pelas cachaças, pela fome e pelo sono, não se controlou. Soltou sua gargalhada mais sonora, enquanto tentava explicar o ocorrido:
— Uai, gente, num é que perdi o defunto no meio da estrada?
(1) Ver conto “Como mudar um cemitério”
Conto do Folclores de S.Sebastião do Paraiso (MG)
Belo Horizonte, 22.04.2003
Conto # 217 da SÉRIE MILISTÓRIAS
Conto do folclore de S.Sebastião do Paraíso –