A Maldição da Fada

E então ela abriu os olhos, as pálpebras ainda lhe pesavam e não fosse o contrário, já que nem ao menos ouvira o cantar do galo. Todavia, já havia se tornado impossível dormir com aqueles pensamentos tenebrosos que lhe assombraram durante todo o período de sono; as visões horripilantes que, ela tinha certeza, não tardariam a se concretizar. Restava apenas uma opção: ela iria renunciar, e assim o fez. Entretanto, antes de prosseguir, deixe-me esclarecer alguns pontos da estória para que você, exaltado leitor, possa acompanhar-me através das próximas palavras.

Este conto é demasiado popular em vilarejos escondidos da população, nos quais as mulheres ainda não trabalham e não existe luz elétrica; em um lugar em que as crianças brincam de roda e pulam corda durante as tardes de outono; onde as pessoas vivem de supertições e fazem orações para os seres da natureza. Quem tem me dito tudo a respeito foi uma velha senhora que a pouco mudou-se para a vizinhança. Esta me pediu segredo absoluto, mas como poderei eu sobreviver carregando sobre os ombros um peso tão grande? Confesso que desde a noite em que as palavras entraram em meus ouvidos, não tive mais paz, sentimentos de desespero me tomam todo o tempo, e o medo... Ah, o maldito medo de que eu possa ter, por mínima que seja, alguma ligação com todo o ocorrido.

Pois bem, algo me diz que muitos de vocês desacreditam no fantástico, acham-no satírico e mentiroso, porém não vou importar-me se caçoarem de mim, afinal ninguém sente a agonia que eu sinto, ninguém ouve os sussurros que me atormentam e, muito menos, não existe criatura que se assemelhe tanto a Ela, quanto eu. Peço somente uma coisa, prestem atenção enquanto estiverem lendo minhas pobres palavras – desculpem-me pela minha ignorância ao escrever, sendo esta a primeira vez que me disponho a narrar tal acontecimento para as demais – finjam estar interessados no que lhes é contado, sei que em algum momento irão compreender minha súplica. E agora não posso mais adiar, as palavras brotam como que por magia e me impedem de interrompê-las, elas querem ser ditas.

A pequena criatura, tão frágil e ainda assim tão temível, fez o longo percurso até onde seu destino lhe determinava com o intuito de acabar com seus temores o quanto antes possível. Suas asas não eram delicadas, como sempre nos foi dito. Ela toda era uma figura completamente díspar do que sempre nos acostumamos a acreditar. Quando pequena, eu costumava ouvir histórias sobre as fadas, criaturinhas esvoaçantes que realizam nossos desejos e ajudam todos! Sempre brilhantes e sorridentes, seres do bem. Essa explicação não poderia ser mais... Como posso dizer? As palavras fogem de mim como eu fugiria delas, se fosse capaz.

O pequeno evento aqui disposto é que, entre os galhos das árvores e dentro de suas copas; escondidas nas pétalas das flores; viajando com a brisa mais suave que já se viu, estão os entes que lhe assombrarão em pesadelos, demônios que se intitulam anjos. As nossas fadas, colegas, tem uma tonalidade de pele particularmente intrigante; hora são verdes, da cor da seiva das árvores; outra, rosáceas, como o broto de rosa, ainda novo. Seus olhos, que Deus me proteja de tanto terror, são vazios, enormes buracos negros, cercados por grandes cílios coloridos; a boca é um fio vermelho que parece quase incapaz de ser dividido em dois; as orelhas, pontudas, tem quase o dobro do tamanho de suas cabeças; seus cabelos são labaredas ardentes que flutuam oscilantes; (o desenho que tenho delas nunca chegará aos pés do que você está disposto a imaginar, se algum dia os cientistas forem capazes de, com suas máquinas potentes, captarem meus pensamentos, só então se terá uma forma concreta do que lhes descrevo).

Recuso-me a continuar enganando minha alma ao dizer tantas parafernálias, que Deus me ajude a prosseguir, desta vez, sem mais do que o necessário. Repito agora as exatas palavras que a velha Clara expôs-me.

***

Serás de carne e osso; necessitarás de oxigênio para sobreviver.

Sentirás inveja, ódio e todos os sentimentos destinados aos vivos.

Chorarás lágrimas amargas, na tristeza.

Não mais irá acreditar em seus semelhantes, caçoará quando lhes contarem sobre.

Mas, tudo tem seu preço, e terás que pagar se recusando a amar qualquer criatura humana.

Quando seu coração bater mais forte e perderes o interesse no mundo, sofrerás até a morte o desejo de possuir o que jamais será concedido a ti.

Esses foram os encantamentos que a Rainha Cailleach proferiu; os céus e os infernos agitaram-se em uma dança de discórdia enquanto uma criatura via-se desfazer-se em sua própria magia.

***

Muitas pessoas afirmam ter escutado um grito ensurdecedor quando a tempestade começou, no entanto ninguém tem coragem suficiente para dizê-lo diante da Sacerdotisa, ela diria que era um presságio dos elfos, que uma mudança brusca agitaria a vida pacata que todos ali levavam. E foi somente na noite de festejos que, levado pela embriaguez, um jovem rapaz que dançava com a Senhora Cigana, deixou-lhe escapar ao pé do ouvido:

“Uma moça, uns me disseram, mais bela que a própria Vênus! Nos sonhos de todos os moradores da Vila.” seu hálito com cheiro de álcool deixava a Sacerdotisa aturdida.

Teria insistido na história se um pequeno tumulto não se formasse mais a frente. Deixou o bêbado − que não demorou muito, já estava cambaleando aos beijos com uma mocinha − para juntar-se as pessoas.

“Ora, disse, e ao som de sua voz todas as outras se calaram, que se passa?”

“Minha senhora, uma mulher arredondada sorriu, venha ler a mão da garota, venha!” sem esperar resposta positiva, induziu-a até onde uma jovem acomodava-se sentada sobre o gramado.

Era uma moça bonita no seu vestido branco e leve de sarja, os pés descalços estavam envolvidos com fitas de cetim; algumas garotinhas adornavam-lhe o cabelo longo e escuro com flores cor-de-rosa; seus olhos tinham qualquer coisa de sinistro, entretanto o sorriso vindo dos lábios rubros derrubava qualquer receio. Uma camponesa vinda do Norte; tinha chegado aos arredores naquele fim de tarde e, sabendo da Noite das Fadas, decidira passar para que a Sacerdotisa visse seu futuro.

“Qual o seu nome, minha criança?” indagou a Senhora, se sentado ao seu lado. Por algum momento a moça pareceu dispersa com a cantoria, mas voltou-se equivocada para a Cigana.

“Perdão, senhora, não tenho nome. De onde eu venho, é proibido ter nome próprio, apenas nossa mestra tem esse poder.”

“Como pode?! Que absurdo não teres um nome... Vamos lá, olhe para mim. Não, dentro dos meus olhos, sem medo querida, olhe.”

Os raios da lua banhavam ambas; a Sacerdotisa tinha a pele cor de café, com olhos redondos, da cor do mel fresco das abelhas. A camponesa era clara, muitos diriam ser pó de arroz que ela teria passado por demais na face, mesmo notando-se ser sua cor natural. Tinha lindos olhos, já o disse, não? Pois repito, é bom forçar a mente do leitor para certos detalhes.

“Tem olhos escuros, mais do que qualquer outro que já tenha visto em minha existência; e olhe que eu já tenho vivido por séculos, filha, a Cigana dizia, seu perfume é emblemático, seu rosto desconhecido, assim como suas procedências; os deuses me dizem que nem eu poderei contar-lhe muito a seu respeito que você mesma não o saiba; é misteriosa, criança, como a noite.”

A multidão já havia se dispersado, todos se puseram a voltar para a folia.

“Chama-se Lilah, uma palavra do antigo livro hebraico, equivalente à noite, enigma e magia. Sim esse é seu nome, criança. Lilah.”

A expressão que se formou no rosto menina-mulher foi um misto de pasmo e felicidade. Quem diria que esse tipo de coisa aconteceria um dia ao povo vindo daquelas bandas do Norte. Como quem está processando toda a informação, Lilah fitou um ponto morto perdido nas chamejas que estalavam na fogueira.

“Muito agradecida, finalmente quebrou o silêncio constrangedor, podes ler as cartas para mim?”

“Como já tenho lhe avisado, não sei o quanto estarei apta a contar-lhe, entretanto já é costume fazê-lo com novos moradores” e, tirando de entre as pesadas vestes um baralho, fez menção para que a moça cortasse-o em duas partes.

Tendo isso pronto, distribuiu um dos pequenos montes na relva úmida; seus olhos por pouco não lhe saltaram das órbitas, estava assustada com o que via.

“Jovem... Nunca, em toda a minha existência, isso me aconteceu. Previ tragédias e vitórias, mortes e nascimentos. Vi toda uma nação se acabar e outra ser levantada em seu lugar, a Sacerdotisa praguejava, todavia perante de meus olhos, pelo poder de Cailleach, não creio no que vejo.

Lilah, a esse ponto, já tinha lágrimas descendo pela face. A Senhora afirmou, com a voz tremula.

“O breu, o silêncio, o nada; são estas as únicas palavras capazes de expressar tal feito.”

A noite já estava cedendo ao nascer do sol; todos se recolheram e voltaram para suas moradas. O dia seguinte seria de trabalho árduo na aldeia. A camponesa já não sabia o que fazer. O destino sempre encontrava uma maneira de nos apanhar, por mais que tentássemos esquivar-nos do mesmo.

***

Sucedeu então que muitas luas se passaram e a jovem a havia se acomodado em uma pensãozinha pelos arredores. Trabalhava cosendo vestidos para as mulheres mais abastadas, que mão tinha! Sua habilidade era passada de mão em mão, a forma como transformava simples pedaços de tecidos em obras de arte; o resultado final era de deixar qualquer moça pobre com o desejo de possuir uma daquelas peças. Vez ou outra se arriscava usar sobras para costurar roupas para as meninas da vila, e então era só alegria. As más línguas soltavam por aí que ela era rica e guardava todo o ouro para, mais tarde, esnobar; porém a verdade é que o aluguel de seu quarto parecia aumentar a cada dia, e os artefatos que necessitava para faze seus serviços estavam lhe custado o olho da cara.

Sempre que era vista estava em seu simples vestido, já amarelado com o tempo; os cabelos trançados com fitas e os pés roçando na terra. Contudo ainda era alvo de muitos olhares masculinos. Imaginem quantos pretendentes lhe apareceram, pedindo-lhe a mão? Já estava em idade de casar, afinal. Lilah sempre os recusava gentilmente, dizendo não ser boa cozinheira e não saber nada sobre os afazeres domésticos. Não queria casar-se, era o fato. Sentia dentro de si que a hora certa não chegava nunca – esse era seu desejo.

Certa tarde caminhava vagarosamente, após voltar de uma entrega – não costumava levar os produtos em domicílio − que lhe lucrara pouco mais que o comum, algumas gotas de chuva caiam sobre seus cabelos e rosto; ainda se conseguiria ver um ou dois grupos de pimpolhos a jogar bola na terra lamacenta, ou então garotinhas que construíam bonecas de barro. Lilah estava absorta na próxima encomenda que recebera (um vestido de casamento) e desenvolvia detalhadamente em sua imaginação como seria belo aquele traje. Foi interrompida ao passo que alguns ruídos incomuns na região puderam ser ouvidos. Trotes de cavalos ao longe, ela pode distinguir. O que haveriam de fazer ali? Seu conhecimento era de que nenhum morador jamais deixou a cidade, de modo que só poderiam ser novos habitantes. Não demorou muito até o barulho aproximar-se, fazendo com que nossa pequena criatura esquivasse-se para a esquerda poucos instantes antes de a tropa passar a toda velocidade ao seu lado.

Um susto.

Uma dor agora em sua cabeça fê-la olhar – nem que fosse uma só vez – para aquelas pessoas e a imagem ficou congelada em seu cérebro. Cinco ao todo; trajando armaduras completas e levando lanças, espadas e escudos nas mãos. Somente um pequeno retângulo logo abaixo das sobrancelhas era visível. Os olhos (e eu sei que muito venho repetindo a mesma palavra; é essencial, vos digo.) uma ou duas vezes pestanejaram naquela fração de segundos, mas nada que a impedisse de tomar seu tom acinzentado para si; a essência que provinha daquelas portas para um novo universo. Portas essas que, Lilah tinha certeza, levariam-na à um mundo imenso e longe deste aqui. E então em alguma dimensão alguém estalou os dedos e fez a cortina cair, o tempo voltou a correr e o sangue pulsava novamente em suas veias. Aquilo não parecia ter significado, tal como seu futuro.

Estando ela em casa, sentou-se na varanda ao lado do maravilhoso tecido alvo e acetinado; os pedaços de renda decorados com ornamentos abstratos e as pequenas miudezas que, não demorasse, muito estariam a caminho do altar. E trabalhou. Durante muitas horas, os calos nas mãos, não sentia; a vontade de descansar, muito menos. Empenhou-se naquilo como jamais fizera anteriormente e tanta era sua vontade que quando surgiram as primeiras gotas do orvalho o vestido estava pronto. Um trabalho dos deuses, qualquer um diria. A cauda longa, a saia tule pregueada enfeitada com pequenas pérolas, o espartilho muito bem ajustado para deixar qualquer cintura de se dar inveja! Sua alegria foi tamanha, pouco faltou para que lágrimas rolassem através do seu rosto. E com essa imagem adormeceu.

O mundo inverteu-se de cabeça para baixo e a expressão tranquila e acolhedora transformou-se por completo. Uma força a dominava em sonhos de uma utopia fantástica, tudo o que até o próprio diabo teme. Talvez ela não suportasse.

Esse é o fado que carrega. Não existem oportunidades de resistir, deve confrontá-la. Não traz controle sobre seus anseios e sempre compreendeu. Foi o ensejo da renuncia. Ah, e o tempo está chegando, prepare-se. Em breve sentirá a sua própria ira.

Ainda que ela não soubesse, esse seria o último pesadelo.

***

Sentou-se ofegante, agarrada a peça que cosera no início da manhã. Assustada reparou que além das janelas o sol ia alto; passavam-se do meio-dia. Apressou-se em lavar o rosto na bacia; estava faminta e assim tomou umas frutas do cesto sobre a mesa. Após, alertou uma mocinha a chamar a senhora que encomendara o vestido, sua exaustão não permitiria uma entrega em mãos hoje. Despedindo-se de Lilah com um tenro abraço a garota correu para longe. Contando o tempo que teria até que a compradora chegasse, banhou-se com a água fria que lhe era disposta. As feridas em suas mãos ardiam conforme molhadas, só que nada importava agora, ela sabia.

Vestiu seu traje puído e sentou-se defronte para o espelho disposto na parede de frete para a entrada do quartinho, escovou os longos cabelos e ajeitou-os com uma fita em uma trança lateral. Pôde ver o espelho refletindo o vestido. Seu rosto iluminou-se como se o estivesse vendo pela primeira vez. A tentação era grande e Lilah não resistiu e algum tempo depois estava dentro da roupa. O tecido era mais macio agora, seus braços cobertos pelo bordado, o cós perfeitamente desenhado... E ela notou o porquê de tanta avidez ao trabalhar nessa peça. Já não havia feito em troca de ouro; nem a pedido de ninguém: desenhara o modelo para si. Desesperada, deixou que o tempo passasse; logo a dona viria buscá-lo e seria redondamente vergonhoso que ela o vestisse.

Era tarde, ela compreendeu. Seu coração batia tão rápido que, uma vez distraída não ouviu quando a porta foi aberta. Não olhava para o reflexo da pessoa, e sim para as próprias mãos. Não tardou a escutar falas e pareceu surgir outra razão para espantar-se.

“Desculpe entrar assim. Chamei, porém, não deve ter prestado atenção. E sei que esperava minha...” Não prosseguiu. Só agora aquele ser percebia o que se sobrevinha, o motivo do silêncio.

A coragem desaparecera por completo de dentro dela; não viraria. Esperaria que ele se cansasse e fosse embora. Entretanto pôs-se a soluçar contra sua vontade. O choro impelia sua garganta e cortava ao meio as cordas vocais.

“Senhora? O que acontece?” a voz estava próxima “Senhora acalme-se, não contarei nada à minha noiva” uma mão encoberta por luvas tocou-lhe o ombro.

O movimento que veio a seguir foi involuntário, seu pescoço girou 30° para a direita e alguns poucos centímetros para cima. Sentia o rosto úmido e o pranto ainda não se sustivera.

Outro susto. A dor que queimava em sua mente. As portas.

“Juro que não direi nada a ela. O acaso quis que sentisse um mal estar, por contrário estaria aqui. Não tem bom gênio ela, faria um alvoroço em volta disso.”

Recobrando o sentido, ficou de pé livrando-se da mão do estranho. Agora ambos se encaravam esperando que o silêncio fosse quebrado. Ninguém conseguia isso. Ele sentia agora também, talvez por isso calou-se. A mente da moça fervilhava. Tinha consciência de que deveria entregar a encomenda para o homem e assim ele iria embora, contudo sabia que seria tão errado quanto detê-la para si. Não foi ela quem costurara todo o modelo afinal? Não havia recebido adiantamento, portanto o vestido seria seu se quisesse. Ainda mais agora que alguma coisa mudava nela. A dona nunca teria essa roupa, jamais. Faria o possível para que aquilo não decorresse.

Aquela cena poderia repetir-se por toda tarde caso batidas não irrompessem da porta da frente.

“Senhor é urgente. Venha, senhor.”

Acatando às ordens, os olhares se desgrudaram e com passos rápidos e desastrados, o homem partiu.

Sozinha novamente mantinha cada detalhe. Fechou os olhos e foi como se ele estivesse mais uma vez ali. Os cabelos alourados e desgrenhados; a curva perfeita dos lábios sem cor; os olhos, que eram vivos e afáveis; sua voz que ainda era intensa em seus ouvidos.

E ele não custou a retornar.

“Pode ficar com o vestido. Não vou mais casar.” Ele contentava-se em olhar para os buracos no assoalho. E como se não quisesse deixá-la curiosa “Acabou de falecer, uma febre acho. Estava bem quando sai de casa, eles disseram que não houve jeito.” ela simplesmente ouvia.

Anuiu a cabeça e deixou o local. Ela sabia que agora ele não voltaria mais. Ela sabia que a morte da moça – que nunca sequer vira – fora sua culpa. Agora ela sabia quem era e a razão pela qual tudo estava acontecendo. O fim se aproximava sem avisar.

***

Aquilo já não era apenas um sonho; as sombras negras que dançavam na parede, à luz da vela, acenavam para que ela os acompanhasse. A cantoria parecia ser somente audível a seus ouvidos, e o frio que a deixava com os membros imobilizados não poderia ser pior. Os fantasmas de toda uma existência passada tocavam seu pescoço e derrubavam-lhe a mobília e ela sabia que logo já não seriam apenas fantasmas; os corpos ganhavam formas e solidez, as dimensões estavam se cruzando e ela poderia escolher apenas uma.

Em uma grande sacola de pele de animal arrumou todos os seus pertences, deixando por último o traje branco. À essa hora a lua já diria olá, contudo que o céu estava completamente escuro; sem sinais de estrelas ou de qualquer outra coisa. Ao passar pela soleira da casa disse a si mesma que nunca desistiria de mudar seu destino, enquanto o mundo existisse ela tentaria.

Seus passos já não eram alegres, os silvos dos animais não a assustavam e para os seres da natureza que ali habitavam não dava a mínima. A chuva molhava seus cabelos, entretanto era como se estivesse lavando sua alma. E na escuridão ela não percebeu quando foi bloqueada por algo.

Alguém.

Não houve tempo de pedir desculpas, ela já sabia quem se encontrava diante.

“Você soube, não? Sei que soube. Assim como eu.” Ele dizia “Senti um ímpeto de vir aqui à essa hora. E o mesmo fez você.”

“Não está entendendo” era a primeira vez que diria a palavra à ele, eu não tenho um futuro, nada pode acontecer. “Minha sina é o nada e assim será a qualquer um que se junte a minha jornada. Algo que não terá fim nessa Terra. Por anos, séculos, milênios. A mesma coisa sempre. Andando em direção a uma história que eu não tenho.”

Estavam muito perto um do outro. Ele fez uma singela observação.

“Não sei seu nome.”

Um turbilhão de pensamentos passou-lhe diante da vista; ela percebeu que também não o sabia.

“Nem haverá de saber. Não tenho um. As pessoas chamam-me Lilah, uma palavra que define a noite.” O sussurro saiu mais alto do que o planejado. “E você, como posso chamar-lhe?”

“Marshall.” Agora já podiam sentir a respiração um do outro e ouvir o palpitar dos corações.

“Não posso” lamentou.

“Não podemos” corrigiu ele. “Mas é tarde. Aqui estamos destinados a acabar sempre que esse momento se repetir. Amaldiçoados pelos quatro cantos do mundo.”

“Promete-me algo?” pediu suplicante.

“Sempre”

“Daqui a pouco, não existiremos mais nesta vida. Você sempre saberá quem eu sou quando renascermos. Independente do que se suceda, iremos nos encontrar sempre.”

“Você fará o mesmo. Meu nome será reconhecível á seus ouvidos. Sim, sempre vamos nos encontrar.”

No exato momento em que os lábios se encontraram a profecia se cumpria. Mãos ossudas puxaram-na pelos ombros e cintura para trás, arrancando-a dos braços de Marshall, sua face foi cortada por lâminas abrasadoras, com um brilho laranja especial. Toda a fantasia que ela mantinha era derretida pelas chamas e o pobre rapaz esperava atônito, uma resolução. O chão se abria sob seus pés e o céu acima de sua cabeça; era preciso fazer uma escolha. Criaturas sedentas de sangue, alastrando um odor de podridão, subiram da terra. Anjos com asas cortadas ao meio e cobertos de feridas, desceram dos céus. Um riso ecoou em toda a base do planeta; o terror abominável espalhou-se com rapidez; um espaço entre duas nuvens abriu-se para que de lá surgisse a lua cor de vinho e para completar o cenário a melodia fúnebre se iniciou. A moça foi largada no chão e, sem apoio, caiu sobre os joelhos. A máscara já não a encobria mais. Os cabelos eram labaredas coloridas, os olhos um vazio sem vida; já não era humana, óbvio, porém a decisão final pesava-lhe sobre os ombros.

Sem nem ao menos pestanejar, segurou a mão do demônio que quebrou seus frágeis dedos. O anjo então ergueu Marshall pelos braços, guiando-o através da aura dourada e pálida no caminho do Paraíso.

O bosque voltou as ser apenas um bosque e daquele dia em diante, ninguém da pequena Vila sequer ouvira falar em tal camponesa. Era apenas uma lembrança na mente daqueles que fazia ofertas aos duendes ou as fadas; dos feiticeiros que acreditavam isso ser uma estória da carochinha. Em todas as Noites das Fadas, porém, se você prestar certa atenção no ponto exato aonde Firmamento e Trevas se encontram pode ver uma menina vestida de branco fitando o vazio e chamando por seu amado. Não havia mais Lilah nem mais Marshall em lugar nenhum. Eles viriam a ressurgir, exato, todavia em tempos ainda distantes daquele. Em todas as vidas possíveis, sempre se reencontrando e sendo separados pelo destino até a hora em que juntos conseguissem ser mais fortes que o mal que caia sobre os mesmos.

Muito tempo depois, eles prosseguem perdidos pelo mundo, longe um do outro. A promessa foi mantida. Todas as noites quando ela se deita vê a figura do rapaz que nunca conheceu; ele sonha com uma jovem que lhe sorri e segura sua mão. Os dois chamam pelos nomes durante o sono, e assim mantêm a ligação eterna de um amor proibido.

Lilithy Durfy
Enviado por Lilithy Durfy em 15/05/2014
Código do texto: T4807598
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