208 - O ÍNCUBO DO CARPIONTEIRO EMANUEL

Está condenado a fazer a própria cruz. A tarefa, que deve ser completada em mil dias, está chegando ao fim. O jovem carpinteiro e os dois outros condenados obedecem às ordens, ora de Deus, ora do Demônio, construindo a grande cruz, sabendo de antemão que ele, Emanuel, nela será pregado.

A madeira veio de longe. Eles próprios puseram abaixo o grande cedro, encontrado bem longe dali. Arrastaram a árvore por dias e noites sem fim, através de planícies e pântanos, serras e montes. Estão exaustos, pois trabalham noite e dia sem cessar, com a obstinação que chega à loucura. Os olhos brilhantes já mostram que estão à beira da insanidade. Os seus algozes não lhes dão um momento de descanso.

— Como poderei servir a dois senhores ao mesmo tempo? — Emanuel grita aos quatro ventos, desesperado, temendo não conseguir cumprir a tarefa no tempo determinado.

Enfim, a enorme cruz está pronta. Ao redor dos três condenados, montes de lascas de madeira de amontoam. Surpreso, Emanuel verifica que os dois outros companheiros de desgraça fizeram mais duas cruzes, com os galhos do gigantesco carvalho.

De novo sente a presença ambígua dos dois senhores, Deus e o Diabo. Sabe que estão ali assistindo ao seu esforço sobre-humano, interessados na sua alma. Como também ns almas de seus amigos.

É de tarde, mas o céu se torna escuro, repentinamente coberto por espessas nuvens negras. A tragédia está próxima do fim. Como que assistindo ao cenário fora de seu próprio corpo, Emanuel se vê pregado na cruz maior, com grossos pregos de metal que lhe dilaceram as palmas das mãos e os pés, assim como seus dois amigos, um de cada lado. Não sente as dores das feridas das mãos e dos pés, mas, sim, uma profunda angústia, mais forte do que a maior dor do mundo. As cruzes estão cravadas no topo da montanha, que, de vez em quando, é envolta por nuvens escuras algumas, brilhantes outras. Acima, por entre as nuvens, Deus observa, impávido, os três crucificados. Abaixo, sob a montanha, o Demônio espera, sorriso diabólico nos lábios inflamados.

Como que abandonando o corpo à própria sorte, Emanuel pode assistir, de longe, o cenário tétrico, o drama de proporções telúricas, com a presença das entidades máximas, manipuladores de todas as energias do Universo.

O companheiro do lado esquerdo grita imprecações contra Deus, o Diabo e o mundo:

— Malditos sejam todos, por toda a eternidade. Não mereço esse castigo eterno por meus pecados terrenos. Malditos, malditos, malditos três vezes o infinito número da Besta.

Satã sorri malevolamente e passa a sua mão sobre a cabeça do crucificado inconformado, apossando-se definitivamente de sua alma.

Do seu lado direito geme o outro marceneiro, baixinho. Suas queixas quase não chegam aos ouvidos de Emanuel. Fraco e delirante, sussurra:

— Não quero morrer agora. Desejo viver para redimir minhas culpas – se bem que não me recordo de ter sido um pecador. Quero mais uma chance.

Um facho de luz dourada emana do Deus e ilumina fronte do segundo homem, que desfalece em paz.

No centro, o jovem marceneiro cujas feições parecem carregar as culpas de milhões de pecadores, sofre na mente e no coração o carma universal que deve purgar. Não reclama de seu destino. Mas eis que começa a sentir um calor estranho, vindo de baixo, de sob a cruz: um fogo devorador, sulfúrico, sobe pela cruz, atingindo-lhe os pés. O cheiro de enxofre denuncia a origem do fogo. O Demônio solta gargalhadas que ecoam Universo afora.

Emanuel parece não compreender a extensão de seu drama, do seu sacrifício. Como derradeira oração, eleva seu pensamento a Deus:

— Porque estou tão só? Porque fui abandonado?

O fogo do Inferno sobe por suas pernas, coxas. Não agüenta o calor, que lhe devora o corpo vivo. É quando, num último esforço físico, olha para cima e, no derradeiro lampejo de consciência, vê uma luz intensa que parte do olhar de Deus e chega até ele, redimindo-o de todo o sofrimento e elevando-o às alturas da Felicidade Eterna.

Antonio Roque Gobbo —

Belo Horizonte, 22 de fevereiro de 03 —

Conto # 208 DA SERIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 09/05/2014
Reeditado em 09/05/2014
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