Eu e a faca

Era eu ou a faca. Lá fora, o povo encomendando flores, Pai de Santo quebrando velas, rezadeiras com suas benzeduras, grupos de jovens cristãos em eterna vigília ecumênica, uma tentativa desesperada, portanto, de se iniciar ali, mesmo que contra vontades alheias, uma espécie de sincretismo religioso.

Lá dentro, eu e a faca; lá fora, carpideiras pré-pagas, prontas para chorar em dó maior não o meu infortúnio, mas a minha passagem para o além, para o indizível.

Meu ectoplasma, frio e silencioso, ensaiava formas diversas. Ali, era eu ou a faca...

Em determinado momento, meu ectoplasma foi diluindo a sua essência... formando, em seguida, pequenas bolhas de ar que refletiam a luz do sol, revelando um espectro surpreendente. Eu não tinha dúvidas, era eu ou a faca. Naquela hora eu me lembrei da minha infância e baixinho, porém sem desviar o olhar do espectro, evoquei: “Salve, Rainha, mãe de misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos os degradados, filhos de Eva. A vós suspiramos, gemendo e chorando neste vale de lágrimas...”

Antes mesmo de dar por encerrada aquela oração, as cores do espectro já me haviam seduzido a ponto de eu levitar. Inconsciente, mas decidido, pedi a mim mesmo que eu saísse daquele estado de torpor e acabei obedecendo, - nem sempre fui obediente, mas nunca insano. Restávamos nós, eu e a faca.

Do canto em que eu estava, mantendo uma distância segura do meu algoz, pude olhar rapidamente pela fresta da janela e perceber que, como na música do João Bosco, as pessoas já improvisavam, ali mesmo na calçada, em uns fogareiros de barro, algumas iguarias para Cosme, Damião e Doum; só não havia ainda corpo estendido no chão. Acredito que graças à força antropológica do cheiro do dendê baiano que rapidamente se espalhou, aquela gente resolveu se unir, ouvindo sem pestanejar “A terceira lâmina”, música de Zé Ramalho, tocada em uma pick up (aquelas antigas vitrolas usadas para tocar disco de vinil).

Apesar de lá fora já ser quase Carnaval, cá dentro ainda éramos uma fria realidade, eu e a faca. Resolvi tentar mais uma vez desconstituir aquela situação cantarolando: “É aquela que fere, que virá mais tranqüila com a fome do povo, com pedaços da vida, como a dura semente que prende no fogo de toda multidão...” – é isso aí – pensei! – existe uma terceira lâmina; essa, com certeza, eu poderia usar para me defender. Corri para a cozinha, entulhei o microondas com milho para pipoca e aguardei ansioso enquanto ouvia os estalos; saí porta afora, carregando uma enorme bacia de pipocas, - essa era a minha terceira lâmina, meu “abre caminhos”- eu precisava amolecer o coração duro de Obaluayê. De qualquer forma, se fosse para ter missa lá fora, que fosse de corpo presente!

Masé Quadros
Enviado por Masé Quadros em 01/05/2014
Código do texto: T4790707
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