O NÁUFRAGO

E lá estava Demétrio há mais de dez anos na ilha, mais solitário que Robinson Crusoé. Pois se o famoso náufrago encontrou um companheiro, resgatando o índio Sexta-Feira, Demétrio não teve a mesma sorte. Desde o naufrágio do navio do qual era ajudante do capitão, e do qual somente ele conseguira escapar com vida, nunca mais viu ninguém.

A princípio, foi difícil. Na ilha só havia a mata tropical, entremeada por coqueiros, que lhe forneceram meios de sobrevivência. Além da alimentação, também obtivera das árvores materiais para fazer tangas e proteção contra as intempéries: uma cabana rústica que vinha resistindo aos muitos anos de chuvaradas e temporais comuns na área.

Estava assim, já conformado com sua sorte, quando, numa clara manhã, ouviu um som diferente, um silvo agudo, vindo do céu. Procurou no azul infinito, olhando para todos os quadrantes, a explicação do barulho que crescia a cada momento.

Foi quando viu a estria branca de fumaça que acompanhava, qual cauda de um cometa ou estrela cadente, um bólido prateado. Um avião! Um avião! Começou a gritar inutilmente, pois o avião estava a considerável altura e, por certo, nem mesmo a minúscula ilha seria visível lá do alto.

Mas para Demétrio, aquela era a única, a última oportunidade de se fazer visto, de ser salvo. Gritando, agitando os braços, tropeçando nos cocos que se esparramavam pela praia, não se deu conta de que o avião estava em curso de queda: a fumaça era sinal evidente de que a nave estava fora de controle e que descia em velocidade crescente. E vinha justamente na direção da ilha.

— Hei, aqui! Estou aqui. Venham, estou esperando por vocês. — Gritando, correndo, ensandecido, viu, finalmente, que o avião estava caindo. A grande coluna de água que se ergueu e o estrondo causado pelo impacto da grande aeronave no oceano trouxe Demétrio de volta à realidade.

— Puta merda, o avião caiu! E não sobrou nada, ninguém.

Apenas alguns poucos destroços marcavam na superfície o local onde o avião mergulhara para sempre. Como a distância entre a ilha e o local era considerável, Demétrio não podia ver que entre poucos objetos flutuantes, uma pessoa tentava desesperadamente sobreviver. Mas quando o único sobrevivente se aproximou da praia, Demétrio viu que se tratava de uma mulher, sobre uma almofada, que nadava vigorosamente na direção da praia onde ele estava.

Recomeçou sua atividade maluca para se fazer notado.

— Aqui, venha pra cá! Força ! Estou aqui, venha! —Na ânsia de se fazer notado, mergulha nas águas e dirige-se em poderosas braçadas (não havia perdido o treino nesses muitos anos de vida à beira-mar) a fim de encontrar a sobrevivente.

A mulher já estava quase desfalecida, abraçando a almofada flutuante e uma sacola de couro, quando Demétrio agarrou-a e ajudou-a a chegar à praia.

— Graças a Deus! — Arfando e tossindo, essas foram as primeiras palavras da mulher.

Demétrio notou que, mesmo molhada, cansada, com chamuscados pelos braços, tratava-se de uma bela morena. Alta, esguia, cabelos longos e a pele cor de canela. Demétrio sentiu de imediato uma irresistível atração por ela.

Passados os primeiros momentos, começaram a conversar. Ela descansada e seca e ele curioso para saber dos fatos.

— Houve uma pane no avião, o fogo começou na cauda e veio se espalhando. Como eu estava perto da porta, fui lançada ao mar assim que o avião espatifou-se no mar.

— Você era passageira? Para onde ia?

— Era comissária de bordo. Parece que fui a única sobrevivente. E você? Como veio parar aqui?

— Naufraguei há mais de dez anos. Também fui o único que escapou com vida.

— Consegui segurar minha bolsa de viagem. Veja, tem uma porção de coisas das quais você vai gostar. —Abrindo a grande sacola, tirou de dentro um maço de cigarros.

— Cigarros? —Demétrio extasia-se. Pega um do maço e põe logo nos lábios. Ela aproxima-se e acende o cigarro. Fumam juntos. Numa intimidade que agrada a Demétrio e que, parece, também é do gosto da aeromoça.

— Ah! Tenho outra coisa de que, tenho certeza, você vai adorar. — Vasculhando a bolsa, tira do fundo uma garrafinha com líquido de cor âmbar.

— Uísque! Ai! Me dá uma bebidinha! — Demétrio se extasia. — Há quanto tempo...!

Ambos estão agora juntinhos, sentados na praia quente. Ela já está tranqüila, e Demétrio sente que a simpatia é mútua. Ela se mostra dengosa, envolvente.

— Ah! Agora tenho uma coisa muito especial pra você. Tenho certeza de que você vai adorar . — O tom e a sedução das palavras da jovem são inequívocos. Ela se encosta em Demétrio. — Mas você tem de adivinhar o que quero lhe dar.

Demétrio, com os olhos brilhando, tenta acertar de primeira:

— Não vá me dizer que você tem aí, escondido na bolsa , um baralhinho, hein?

ANTONIO ROQUE GOBBO

Belo Horizonte, 20 de Junho de 2002

Conto # 163 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 23/04/2014
Reeditado em 23/04/2014
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