A GUERRA PUNK
Sentados à mesa de um bar, eu e minha esposa folheamos uma revista semanal, apreciando juntos extensa reportagem sobre arte.
— Veja, são fotografias de quadros de artistas da Semana de Arte Moderna. — Chamo a atenção de Enny para as brilhantes reproduções fotográficas.
— Não, não! — Ela responde, passando as páginas. — São desenhos de crianças.
Noto, então, que na seqüência das páginas, aparecem, realmente, desenhos infantis. Um deles mostra Renato Aragão, que desliza num campo de neve. O quadro tem vida e o personagem cômico passa rindo para mim.
A mesa à qual estamos sentados é pequena, quadrada. Não tem toalha e seu tampo está gasto, escalavrado por cortes de canivetes e coberto por manchas de tinta a óleo. A própria mesa aparenta ser um quadro surrealista. As tintas têm vida e movimentam-se sobre o tampo, inserindo-se nas fendas e nos pequenos buracos. A mesa está numa calçada, certamente um café de Paris.
Estamos sentados de frente para um estabelecimento de modas. Pode-se ver, através de uma vitrina sem vidro, o interior da grande loja. Lá dentro, acontece uma demonstração, pequeno desfile de modas para duas ou três clientes. Quem desfila, apresentando um cafetã, é o Zé Luiz “Ponte Nova”, ex-colega do Banco do Brasil, maneiroso e delicado. A larga bata mais parece um camisolão, nas cores dourado e vermelho, de gola raglã. Ponte Nova não gosta da vestimenta. Em seguida, vem o modista, uma bicha louquíssima, que, usando o mesmo cafetã, desfila perante nós. Então, eu e Enny, ainda sentados à mesa do bar, fazemos parte dos assistentes do desfile de modas: estamos dentro do ateliê de costura.
— Quero comprar este modelo. Ele combina comigo. — Diz Enny, sem se dirigir especialmente para ninguém.
— Pode escolher o que quiser. — Respondo.
Mas antes de qualquer atitude minha, o estabelecimento de moda se transforma em agência de banco, com amplos balcões, mesas e cadeiras. Uma agência bancária dos anos 50: móveis escuros, paredes idem, pouca iluminação. Um contínuo passa, limpando as mesas com um pano alaranjado.
— Acorda, cara! Isso aí já está limpo! — Grito para o rapaz.
A agência bancária e todas as pessoas desaparecem. Súbito, me vejo sentado no chão arenoso de uma região montanhosa. Altos barrancos sem vegetação fazem um valado por onde corre um riacho de águas transparentes. Estou sentado com as pernas cruzadas, na posição de lótus, e um homem ruivo me importuna. Levanto-me e passo a esmurrar-lhe o rosto, que se revela ser – literalmente – de madeira compensada. Lascas espirram a cada murro que lhe aplico. Continuo esmurrando-o e ele mantém o sorriso sarcástico na sua cara de pau.
O ambiente se transforma novamente. Agora estou num amplo local, um salão imenso, com pessoas estranhas. São todos homens, que sorriem sinistramente uns para os outros e também para mim. Dou-me conta de que se trata de um programa de televisão do tipo reality show, do qual não quero participar.
— Já cansei de falar que não tolero esse tipo de programa! — Grito, fugindo do local. Estou usando meu chapéu panamá branco, que cai quando escapo do sinistro grupo. Agarro o chapéu, recoloco-o na cabeça e continuo correndo.
Na fuga, enveredo por uma senda entre altos barrancos arenosos de cores vibrantes: vermelhos e alaranjados, repetindo as cores da vestimenta que vira no ateliê. No meio da larga passagem, deparo com quatro dos homens que estavam no reality show. Um deles tira de uma sacola que traz dependurada no ombro uma corda com nó corrediço. Cercam-me, numa atitude hostil.
— Se me pegam, vão me enforcar. — Penso. Mas tudo parece fazer parte do programa de TV, não é pra valer, tenho certeza.
Mesmo assim, fujo da situação, escorregando por uma rampa de areia, lateral ao caminho, numa fenda entre o alto paredão de arenito. Meu chapéu branco voa pra longe e cai em local inacessível. Continuo deslizando pela rampa de areia, descendo sempre. A rampa termina às margens de um rio estreito e raso. Num pulo, coloco-me de pé às margens do rio.
Kirk Douglas e Burt Lancaster passam por mim, rindo sarcasticamente e com jeito de reprovação. Conversam entre si e parece que falam a meu respeito. Kirk Douglas é um pirata, parecendo o Capitão Gancho, com um tricórnio na cabeça. Burt Lancaster também é um flibusteiro: usa lenço vermelho amarrado na cabeça, e caminha com auxílio de uma muleta, como se fosse a encarnação de Long John Silver. Tento conversar com eles, estou desorientado, quero informações. Mas os dois fingem não me ver e continuam caminhando dentro do rio, a água batendo em suas canelas. Desaparecem de minha visão quando entram em uma caverna, sempre vadeando o rio.
Pelo centro do rio vem descendo uma barca de fundo chato, na qual está um grupo de cantores. Aparentemente embriagados, cantam músicas dos Beatles, fazendo grande alarido. Desembarcam na praia e passam perto de mim. São membros de uma equipe de basquete: rapazes altos e, entre eles, um baixinho. Tento informar-me mas não me dão atenção.
De repente, estou montado sobre um estreito paredão de cimento. Abaixo de mim, cerca de quinze metros, vejo correr a fina faixa de água. Agora estou certo de que me encontro no fundo do Grand Canyon. O paredão de cimento sobre o qual estou montado desajeitadamente vai se encurtando, diminuindo no comprimento, de tal forma que logo estou sobre uma fina coluna, tentando manter-me precariamente.
A seguir, estou numa região arenosa: altas dunas brancas com capim rasteiro. Do alto da duna estou em companhia de um ser estranho. Surge, repentinamente, vindo não sei de onde, um tanque de guerra totalmente negro, desenvolvendo velocidade máxima: parece voar nas suas arremetidas por sobre as altas dunas. Acima do ranger de metais do tanque ouço um grito assustador:
— É a guerra da Argentina!
Eu e o ser peludo que está ao meu lado escondemo-nos em uma cavidade sob a duna. Andando por esta cavidade, que se transforma numa caverna, encontro-me defronte a uma construção ou dispositivo de guerra: uma larga esteira rolante que se ergue a mais ou menos metro e meio do solo. É uma máquina transportadora de armas. Parece ser infinita, não vejo seu início nem fim. Estende-se por sobre as dunas. Coberta por lona ou couro. Quando levanto uma das pontas da cobertura, vejo que debaixo estão espingardas, trabucos, fuzis, todas armas antigas, mas limpas e lubrificadas, prontas para serem usadas.
Tento alçar-me para cima da esteira rolante que transporta armas. Do alto da esteira aparece um soldado trajando uniforme totalmente negro. Quando vejo seu rosto, é uma caveira que me sorri. Sei que se trata de um esqueleto dentro do uniforme.
— Que guerra é esta? — Pergunto ao soldado, sem medo.
— É a Guerra Punk. — Responde-me o esqueleto vestido de soldado, soltando uma gargalhada.
Continuo na tentativa de subir para a esteira rolante. Não consigo levantar-me e peço ajuda ao soldado/esqueleto. A fim de me erguer, começa a enroscar parafusos no meu calcanhar.
— Ei, espera aí! Não precisa disso, não! — Grito. Deixo-me cair sobre a areia. O esqueleto já havia colocado dois longos e grossos parafusos no meu calcanhar, que removo com facilidade, pois estão frouxos nos buracos do pé. Não sinto dor alguma, é como se eu fosse um robô, feito de metal.
Ao cair sobre a duna, vou deslizando novamente na direção do fundo do cânion. Volto para o local onde desliza o rio raso e de águas claras. O que me detém, impedindo de escorregar até o rio, é um barco encalhado no fundo do cânion. A borda é alta, mais de um metro de altura. No fundo do barco está uma jovem loira. Reconheço-a: é a atendente da loja de xérox onde faço cópias. Está com um nenê ou uma boneca nos braços. A saia erguida deixa ver as coxas e as pernas, que são totalmente cobertas de micro-varizes, o que dá uma cor violácea aos pés, pernas e coxas.
A mocinha loira de pernas roxas começa a desfiar a sua vida, contando-me intimidades. Interrompo-a:
— Espera aí! Não sou confessor, não! Só vou escutar suas mazelas se puder descrevê-las em meus contos.
E fim.
ANTONIO ROUE GOBBO
Belo Horizonte, 28 de maio de 2002
Conto # 161 da série Milistórias