UMA CADEIRA NO CÉU
Os fiéis estavam assustados com os boatos que corriam soltos. Teosacreis Dujas chegara recentemente de viagem e, com o espalhafato que lhe era peculiar, exibia uma fantástica novidade.
— Este pedacinho de madeira é uma relíquia sagrada. É um pedaço da verdadeira cruz onde Jesus Cristo foi crucificado. — Mostrava a relíquia, guardada em um minúsculo estojo de latão amarelo brilhante, que dizia ser de ouro. — Trouxe de Jerusalém. Foi difícil comprar, já não existem mais outros pedaços. Quem tem, não vende de jeito nenhum. Foi preciso muita conversa para poder adquirir este pedacinho.
Que o grego Teosacreis tinha conversa para comprar e vender o que quisesse, ninguém, na pequena cidade de São Roque da Serra, duvidava. Agora, se aquele pedacinho de madeira pertencera mesmo à cruz de Cristo... bem, era de se duvidar.
Um dos primeiros a examinar a lasca foi Seu José, carpinteiro de experiência e conhecedor inconteste de madeiras as mais diferentes.
— Olha, seu Dujas, essa lasca aí não parece ter os dois mil anos que o senhor afirma. — A singeleza e a simplicidade do velho carpinteiro ao dar seu veredicto, longe de aclarar a questão, complicou-a.
— Ara, seu José, sua opinião não vale nada. Veja aqui este certificado. — E Teosacreis exibia um papel minúsculo escrito em francês, em letras miudinhas, que atestavam a autenticidade da relíquia.
Mas não foi só a opinião do Seu José, o carpinteiro, que pôs em cheque a veracidade da compra. Monsenhor Dionísio também tinha uma lasca do Lenho Sagrado, que não exibia senão na Quinta-Feira Santa, no final da procissão de Corpus Christi. Antes de elevar o relicário com a hóstia consagrada, o pároco elevava nas mãos perante os fiéis a caixa de metal, a qual dizia conter um pedaço da cruz da crucificação de Jesus.
Quando Teosacreis Dujas chegou com sua relíquia, um confronto com a do Monsenhor foi inevitável. Na presença de diversas pessoas gradas — o Juiz de Direito, o Prefeito, o Delegado de Polícia, o presidente do clube social e o diretor do ginásio, entre outras — as relíquias foram comparadas. Também presente estava Seu José, o carpinteiro.
— Pra mim, são duas madeiras completamente diferentes. — Novamente Seu José, o carpinteiro, deu sua opinião, já que ninguém se atrevia a falar coisa alguma. — Uma dessas peças é falsa. Aliás, a bem da verdade, para mim, nenhuma dessas lascas é tão antiga assim. Não reconheço nelas a idade que dizem ter.
Seu José agora tinha contra sua opinião ambos os proprietários das relíquias. Teosacreis Dujas insistia na validade da sua, mostrando o certificado. Para ele, era vital que a lasca de madeira fosse autêntica, pois a havia adquirido para o Comendador Zacarias. Já o monsenhor não admitia qualquer suspeita sobre a autenticidade de seu pedaço da cruz.
— Esta relíquia me foi presenteada pelo próprio Papa. Foi no Ano Santo de 1950, vocês se lembram, quando estive em Roma. Não foi comprada, não. O senhor me desculpe, mas acredito que o senhor foi vítima de simonia.
O impasse estava criado. A cidade se alvoroçou. A fofoca e a boataria corriam céleres, alimentada pelas suspeitas de cada um sobre qual seria a peça falsa.
Seu José, o carpinteiro de longas barbas, contava à mulher Maria e ao filho, o que havia acontecido na reunião da Casa Paroquial.
—Pois é, tanto o padre quanto o grego estão praticando a simonia. É errado.
— Papai, o que é simonia? — Perguntou o garoto adolescente, curioso e especula.
— Simonia, meu filho, é a venda criminosa de coisas santas ou espirituais. Como, por exemplo, esses pedacinhos de madeira, que são vendidos como lascas da cruz onde Jesus foi crucificado. Há também a venda de dignidades, benefícios, sacramentos.
— Venda de escapulário é simonia?
— Claro. Você já usou, sabe como é.
— É um saquinho de pano que a gente usa dependurado no pescoço. Não pode tirar nem pra tomar banho. Dentro tem uma oração que garante que quem morrer usando o escapulário, vai direto pro céu.
— Pois então. É venda de uma garantia, de um benefício que ninguém pode assegurar. E por falar nisso, por que você não usa mais o escapulário?
— É que ficou ensebado e começou a feder. Devolvi pro Irmão Leonardo, que tinha me vendido e que proibia a gente de jogá-lo fora.
— E ele devolveu o dinheiro que você pagou ?
— Que nada!
— Pois é. Agora, com esses pedaços de madeira está acontecendo a mesma coisa. Alguém foi tapeado. Ou o Monsenhor ou o grego. Como nenhum dos dois tem interesse em saber qual dos dois pedaços é falso, ambos vão ficar teimando. Aliás, fiquei sabendo que o Teosacreis trouxe a relíquia a pedido do Comendador Zacarias, que, agora, não quer mais ficar com a lasca “sagrada”.
— Comendador Zacarias? Não foi ele que comprou uma cadeira no céu? — Maria, a mulher de Seu José, o carpinteiro, entra na conversa.
— Esse mesmo. Ele gosta de comprar objetos sagrados. Quando soube que Teosacreis Dujas ia numa viagem pra Palestina, encomendou uma relíquia. E o grego, todo mundo sabe que pilantra ele é. Nem se sabe mesmo, com certeza, de que ele esteve em Jerusalém.
— Dizem que a cadeira no céu, que o comendador comprou, custou mais de quinhentos contos. Será verdade? — Maria está curiosa.
— Pois é. Isto tudo, pra quê? Para ter um “lugar” garantido no céu, quando ele morrer. Quanta estupidez.
A venda de cadeira no céu fora prática comum na Igreja Católica. Em São Roque da Serra, Monsenhor Dionísio só conseguira vender uma cadeira. O bispo insistira para que ele vendesse mais, porém ele só conseguira um comprador, o Comendador Zacarias. O próprio monsenhor não acreditava na validade da transação, mas obedecia à orientação da Igreja. O comendador comprara a cadeira no céu porque, com a aquisição, além de ter um lugar garantido no céu, adquiria o direito de envergar a opa roxa, juntamente com o Juiz de Direito, o Prefeito Municipal, o Delegado de Polícia, e carregar o pálio nas procissões.
O velho fazendeiro prezava aqueles privilégios, tinha inveja dos sisudos senhores desfilando com a indumentária colorida, embora não fosse sequer freqüentador das missas aos domingos. Só se confessava e comungava pela ocasião da Semana Santa, quando ouvia os sermões apocalípticos pregados por padres especialistas nessa missão, que ameaçavam a desgraça eterna a todos os que não cumprissem os preceitos anuais.
O aparecimento da falsa relíquia, trazida por Teosacreis Dujas, veio transtornar a calma paroquial. O comendador queria uma relíquia, desejara comprar o pedaço da cruz pertencente ao Monsenhor. Ante a negativa, eis que conseguira, através de pilantra, o grego, a sua relíquia. Por outro lado, a dúvida da autenticidade da relíquia paroquial, levantada pelo carpinteiro deixava o Monsenhor mais irritado com essas transações de coisas religiosas.
Teosacreis Dujas era um grego que vivia de expedientes e golpes. Ele também estava aborrecido com o curso dos acontecimentos. Fora cuidadoso no planejamento. Lembra-se bem de como tinha sido cuidadoso na armação do negócio. Anunciara que faria uma viagem à Europa e até aos Lugares Santos. Ofereceu-se para trazer uma relíquia para o Comendador. Tudo figuração. O que fez mesmo foi desaparecer por uns dois meses da cidade. Viajou, sim, para o Rio, onde sabia encontrar qualquer objeto que servisse para suas trambicagens. Num pequeno estabelecimento da Rua Primeiro de Março, cheio de quinquilharias e artigos estranhos, encontrou o que desejava: uma caixinha de metal dourado, com inscrições orientais e de interior forrado de veludo negro. O pedacinho de madeira, arranjou-o com seu amigo Dirceu, perito em forjar assinaturas falsas em documentos factóides.
— Com essa lasca você engana qualquer comendador caipira. — Gozou o contraventor.
Agora, com essa opinião do Seu José, o carpinteiro, agravada com a comparação com a lasca de madeira do monsenhor, o negócio desandara.
— Pois é, seu Dujas, num quero não essa relíquia. Tá duvidosa. E tá muito cara.
— Faço pela metade do que combinamos. — Teosacreis estava ansioso para terminar o negócio, antes que piorasse.
— Não, seu moço, não me interessa mais.
O grego não se conteve. Nem respeitou a comenda do velho fazendeiro.
— Quer saber duma coisa, comendador? A minha relíquia é verdadeira, falsa é a do Monsenhor. Como falsa é também a cadeira no céu, que ele lhe vendeu. Nunca existiu e jamais existirá uma cadeira no céu, reservada pro senhor. Agora, quem não quer lhe vender a relíquia sou eu. Passe muito bem!
Pisando duro, Teosacreis Dujas deixou o palacete do comendador. Pelo menos, agora ele duvida de tudo. Bom pra ele aprender a lidar com gente esperta.
O comendador sente-se duplamente aviltado. Pelas palavras do grego e a respeito das relíquias, e mais ainda pela dúvida lançada sobre a sua cadeira no céu. Procura Monsenhor Dionísio e vai direto ao assunto.
— Pois é, monsenhor, fiquei sabendo que essa história de cadeira no céu é besteira, que não existe nada. —Diplomaticamente não revela a fonte de sua informação.
— Comendador, que idéia é essa? É claro que existe sim. Não é uma cadeira como essas aqui da terra, mas existe, sim. Seu lugar no céu está garantido. Quem foi que colocou essa idéia na sua cabeça?
— Ah, eu mesmo cheguei a esta conclusão. — Não querendo passar por bobo, o Comendador prossegue. — Quero desfazer o negócio. O senhor me volta o dinheiro e estamos conversados.
— Que é isso, Comendador? — O simples pensamento de devolver os quinhentos contos de réis abalou o Monsenhor. Sem falar nas explicações que teria de dar ao bispo. — Nosso negócio está feito e acabado. Não tem volta.
— Como, não tem volta? Apresente-me, então, uma prova de que essa cadeira no céu existe mesmo. O senhor tem alguma fotografia ou mesmo um quadro, um desenho dessa cadeira que me vendeu?
— Não, Comendador, não é bem assim. É um bem intangível, uma coisa simbólica. Mas seu lugar no céu está garantido, sim.
— Olha, Monsenhor, o que tenho de garantido é que essa cadeira no céu é tão falsa quanto esse pedacinho de madeira que o senhor guarda aí e diz ser da cruz de Jesus Cristo. Se o senhor não me devolver os quinhentos contos, vou direto me queixar ao bispo.
— Monsenhor, monsenhor, como é que deixou as coisas chegarem a esse ponto? Temos de evitar um escândalo a qualquer preço. Não deixe o Comendador me procurar, não quero saber dessa confusão. Devolva o dinheiro pra ele e encerra-se o assunto.
A entrevista concedida pelo bispo foi tão breve que Monsenhor Dionísio anteviu conseqüências muito graves como desdobramento do qüiproquó.
— Mas, Senhor Bispo, onde vou arranjar quinhentos contos assim, de repente, para devolver ao Comendador? Vossa Reverência sabe que usei o dinheiro para a reforma da casa paroquial. Não tenho essa quantia nas contas da paróquia.
— Traga-me sua relíquia, o Lenho Sagrado. Ela vale bem mais para uma senhora devota que conheço. Com a venda da sua relíquia, arranjo o dinheiro para desfazer o negócio com o Comendador.
Com isso, o imbróglio chegou ao fim. Monsenhor perdeu sua relíquia, que nem era sua, era mesmo da paróquia. O Comendador recebeu de volta seus quinhentos contos e não quis saber de comprar mais a relíquia de Teosacreis Dujas. O qual, por sua vez, ficou sem ter para quem vender a relíquia tão habilmente forjada e totalmente desacreditada. Não tendo como descarregar sua ira no Comendador, culpava quem mais estava perto da verdade.
— O culpado de tudo é Seu José, o carpinteiro.
O velho carpinteiro, ao saber que, finalmente tudo se acertara, sorriu e cofiou a longa barba. Porque, a fim de evitar qualquer profanação, fora ele mesmo, havia muito, muito tempo, quem queimara a Verdadeira Cruz .
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ANTONIO ROQUE GOBBO –
Belo Horizonte, 5 de março de 2002.
CONTO # 148 DA SÉRIE MILISTÓRIAS