O PROFETA DO SERTÃO

A única maneira para se ver livre da miséria era o seminário. Difícil foi encontrar uma vaga, havia uma fila de pretendentes e o seminário de Fortaleza era pequeno para tantos candidatos. Os pais de Deusdete não desanimaram. Uma, duas, três, cinco, dez vezes bateram às portas do vetusto edifício. Pela enésima vez, foram atendidos pelo secretário, um padre cujas maneiras delicadas não se coadunavam, em absoluto, com seu porte. Padre Pierre era um homenzarrão de dois metros, porte atlético, a face rubra. Dominava com sua presença qualquer ambiente, atemorizava, no primeiro contato, as pessoas que recebia, mas logo sua atitude carinhosa e compreensiva colocava todos à vontade.

— Bem sei que vocês estão ansiosos para colocar Deusdete no seminário, mas temos de respeitar a fila. A nossa lista tem mais de trezentos nomes.

Dois anos após a primeira visita, surgiu uma esperança. Foi o mesmo Padre Pierre quem deu a boa nova:

— Ano que vem existe uma chance de acolhermos Deusdete. Não descuidem de seus estudos, é importante que ele freqüente a escola e não tome bomba.

— Isso eu garanto, seu Padre. — O pai era severo, temente a Deus e exigente por demais consigo e com a família. — Ele é inteligente e estudioso, vai ser um bom padre.

Deusdete era o décimo segundo filho de uma família de pobres sitiantes. A propriedade era pequena e dela o pai conseguia a custo tirar o sustento para a família. Nos anos de pouca chuva, ou de nenhuma chuva, a miséria rondava a casa e os estômagos roncavam de fome.

Do alto do monte de pedras que constituíam um posto elevado na morraria circundante, o eremita mantinha-se ereto. Alguém que o visse naquela posição, o tomaria por uma estátua, de tão imóvel. A figura inspiraria temor: alto, magro, longos cabelos desgrenhados e a barba comprida até o peito, a tez escura, queimada pelo sol inclemente. Nas órbitas, olhos brilhantes como duas brasas, são os únicos indícios de vida. As roupas rasgadas, em frangalhos, cujas pontas agitam-se movimentadas pelo vento suave, estão negras de sujeira.

O homem solitário não medita nem ora. Naqueles momentos da tarde, quando o sol se põe, dedica-se às suas lembranças. Todos os dias, passa em revista sua vida pregressa, desde os tempos de menino até os últimos acontecimentos. Agora, está especialmente voltado para os anos que viveu no seminário.

Foram dois anos apenas. Reconhecia que era rude, não convivia bem com os colegas, sempre em atritos e desavenças. No confessionário, o mesmo conselho, repetido inúmeras vezes:

— Tenha paciência e tolerância, meu filho. A raiva é a chama do inferno aqui na terra. Reze cinqüenta Padre-Nossos e cinqüenta Ave-Marias.

Como resultado de uma desavença com um colega e num lance de puro azar, ele fora expulso do seminário. Numa discussão acalorada sobre o Mistério da Santíssima Trindade, empurrara o colega, que caiu, batendo com a cabeça na quina da calçada do pátio do colégio. A morte fora instantânea. Fora do seminário, sem capacidade para trabalhar e com vergonha de voltar para casa, ficou alguns dias ao relento, zanzando pelo centro da cidade. Foi quando, numa das inúmeras feiras, tomou-se de admiração por Filemon.

— Vão chegando, venham ver os milagres desta poção maravilhosa, o remédio que cura tudo: erisipela, dor de estômago, tristeza e saudade. Bom até pra aumentar seu dinheiro no bolso. Vão chegando, minha gente!

E as gentes chegavam. A verborréia de Filemon atraía dezenas, centenas de pessoas, que se acercavam, fazendo um círculo no centro do qual o homem apregoava as virtudes do remédio engarrafado em vidros de diversos tamanhos. Vendia tudo o que trazia antes do meio-dia.

Deusdete não esconde sua fascinação pelo camelô, de quem se torna amigo e, em seguida, assistente.

— Você é bom de gogó, fala bonito, como se estivesse num púlpito. — Satisfeito com a associação, Filemon confiava cada vez mais no ajudante. Sem muita tardança faziam uma dupla insuperável na venda do cura-tudo.

— Vamos viajar, vamos para outras cidades, tenho certeza de que venderemos muito.

Saíram pelo sertão, parando em cada cidade para levar os benefícios da maravilhosa poção a todos os moradores. Deusdete observa que o povo é atraído pelo aspecto mágico e misterioso da infusão. Ninguém quer saber de que é feita, quais as ervas são usadas – segredo muito bem guardado por Filemon, que não revela a ninguém, nem mesmo ao assistente. O principal é a promessa dos milagres contida no seu uso. Aos poucos, Deusdete vai transformando sua apregoação medicinal em pregação mística. Sua voz sonora, clara, as palavras bem pronunciadas com vigor e convicção, proporcionam mais e mais venda do produto. Deusdete anuncia o remédio entremeando com passagens da Bíblia, que ele conhece bem, e fazendo associação de cura com os milagres de santos e até de Jesus Cristo.

Bons tempos, aqueles, rememora o eremita em seus devaneios. Mas ele se inquieta, não mais lhe satisfaz misturar as qualidades do cura-tudo com a palavra de Deus. Está com trinta anos, idade de importantes mudanças na vida de todo homem. A certeza de que deve sair para o seus destino, a sua predestinação, instala-se definitivamente em sua mente. Antes de qualquer coisa, tenho de fazer um retiro, passar algum tempo longe de tudo e de todos. Assim pensou e fez. Abandonou a parceria com o próspero camelô e, sem levar nada além da roupa do corpo, uma peixeira e um bornal com matula para alguns dias de caminhada, partiu para o sertão.

Caminhou muitos dias, em direção ao oeste, para onde o sol se põe. As estradas transformaram-se em trilhas e estas em tortuosos caminhos percorridos apenas por pequenos animais e, finalmente, Deusdete estava andando por lugares nunca antes visitados pelo homem. No vigésimo oitavo dia, chegou ao sopé de monte árido e pedregoso. Teve logo certeza de que ali era o lugar de seu retiro. O entardecer foi de gloriosa luz amarelo-dourada, seguida pela noite de lua cheia. Apesar de cansado, vigilou naquela noite, e prometeu a si mesmo que toda noite de plenilúnio seria dedicada integralmente à meditação e oração.

Lugar mais inóspito não encontraria. O clima seco, a caatinga enfezada e o vento constante se uniam para tirar qualquer pretensão de mínimo conforto. Numa depressão do terreno, coberta de cascalho e lascas de pedras, Deusdete fez sua cova, seu lugar para repouso. Não cogitou sequer de saber das condições de sobrevivência. “Deus é meu pastor, nada me faltará”, foi sua primeira prece de reconhecimento da sua situação de eremita.

O que pensava ser apenas algumas semanas foi se estendendo para meses e anos. Agradava-lhe permanecer naquele sítio, tendo por companhia apenas a solidão, o vento e as pedras. Alimento e água não lhe faltaram, um pouco aquém de suas necessidades. O sol do dia queimava-lhe o rosto, as mãos, e, quando as roupas foram se gastando, também as partes do corpo expostas à inclemência do tempo escureceram. Aprendeu a sobreviver mascando raízes e alguns cactos. Mitigava a sede com gotas de água que encontrava cavoucando um buraco no sopé do morro, que foi aumentando em profundidade com as sucessivas escavações.

O silêncio e a quietude do lugar tomaram conta da sua alma. Não se preocupava com nada senão com as orações, a meditação. Nos últimos tempos de seu retiro, outros pensamentos insinuaram-se em sua mente. Aproxima-se o tempo de voltar. Tenho de levar conforto e caridade para meus irmãos. Sentia-se como que iluminado, mensageiro de notícias de paz e amor, que devia levar a todas as pessoas.

Não se preocupava com o tempo. O único registro cronológico que mantinha era a coleção de pedrinhas amontoadas numa pequena lapa, onde se refugiava nas horas de maior calor. Uma pedra para cada lua cheia, que era o seu marco único. Nas noites de plenilúnio, permanecia em vigília, orando, meditando e transformando a prática na parte mais importante de sua espiritualidade.

As pedrinhas indicavam que alguns anos haviam decorridos, quando teve a intuição de que era hora de sua volta para o convívio dos irmãos. Levar sua mensagem de advertência e de coragem para os difíceis tempos que as gentes iriam enfrentar na passagem do século que se aproximava. O aviso de que o final dos tempos se aproximava.

Contou as pedrinhas: oitenta e oito. Por alto, calculou mais de seis anos passados naquela grota. Não tinha como se ver, mas percebia que se tornara mais forte. As privações pelas quais passara proporcionaram-lhe uma resistência fora do comum. O que não via era que se tornara, também, um verdadeiro bicho do mato: barbudo, cabelos desgrenhados, as vestes substituídas por folhas trançadas, o corpo quase negro pela ação do sol, mãos calejadas pelo constante cavoucar o chão em busca de raízes e água, os pés empedernidos pelas constantes caminhadas.

Toma o caminho de volta sem se preocupar com coisa alguma. A tarde já ia alta, o sol inclemente crestando plantas e terras. A luz do sol dourado machucava até mesmo os olhos do caminhante, mergulhados em fundas órbitas. Quando Deusdete acercou-se de um pequeno açude, ajoelhou-se e agradeceu a Deus, antes e tomar os primeiros goles e, em seguida, mergulhar nas águas turvas. Demora-se no banho, na volúpia da água correndo pelo seu corpo. Esta é a porta do Paraíso, pensa. Demora-se tanto a ponto de ser visto por uma mocinha que se aproximara, com a gamela na cabeça, em busca de água.

— Mãe, tá lá um louco tomando banho na cacimba. Vi de longe, fiquei com medo, não tive coragem de chegar pra encher a gamela. — Isolina, apavorada com a visão, voltara num átimo até o casebre semi-escondido pela galharia seca da caatinga.

Maria Tereza, a mãe, é mulher decidida, não é à-toa que, viúva, permanecera no seu sítio, arrostando tempos de seca e de fome, vira o fogo lamber as palhas de seu casebre, matara animais venenosos adentrando-se pelas frestas e repelira bandidos.

— Deixa estar, filha. Nóis se defende. — Acalmando a filha com poucas palavras, prepara-se para receber o louco ou quem quer que seja. Sabe que o homem vai passar pela trilha que corre bem defronte a sua morada. Prepara o facão que o marido usara tantas vezes para abater cabras e caça pequena, e coloca à mão um chuço de mais de dois metros, fina e resistente peça de madeira com aguçada ponteira de metal.

Refrescado e saciado em sua sede, Deusdete retoma o caminho, seguindo pela trilha que se adentra pelo carrascal em que se transformara a vegetação de arbustos. Não vê o casebre senão quando está a apenas uma centena de metros. A poeira se levanta sob seu caminhar firme. O banho em nada contribuíra para melhorar sua aparência. Aproxima-se da casinha sem notar qualquer vestígio de vida. Deve estar abandonada. Vou aproveitar e passar a noite ali. Dentro, porém, mãe e filha observam o louco (elas agora têm certeza) se aproximar. Silenciosamente.

Quando está a alguns metros, já no pequeno terreiro de chão batido, a porta se abre e a mãe aparece, apontando o chuço diretamente para o peito do maluco.

— Pára aí!

Deusdedite se assusta e pára de chofre. Não recua, porém, e sem seguida, em tom apocalíptico, responde à ordem.

— Mulher, mulher! Quem és que ameaças o profeta com esta arma inútil ? Baixa a lança, pois chego em paz, sou mensageiro do Senhor.

— Num me enrola, maluco. Segue seu caminho, que também sou de paz.

— Não sou louco, como tu pensas. Venho de longa jornada, estou cansado e só desejo um lugar fresco para pernoite.

Maria Tereza acredita nas palavras, ditas com tanta solenidade. O homem tem a aparência de louco, mas suas palavras inspiram-lhe confiança. A filha, contudo, ainda está medrosa.

— Mãe, cuidado! Ele tá mentindo pra gente.

— Sou um homem temente a Deus, filha. Sigo para a cidade, vou levando a mensagem do final dos tempos.

— Tá bom. Pode ficar só por esta noite.Do outro lado da casa tem uma parte coberta, pode dormir lá.

No dia seguinte, espíritos serenados, mãe e filha aproximam-se do homem. Informam-se dos respectivos nomes, ele fala da sua vida e do que intenta fazer.

— Mas o senhor vai pra cidade desse jeito? — Maria Tereza estranha a indumentária e os modos de Deusdedite. E oferece: — Tenho ainda algumas roupas velhas do finado. Zolina, vai lá na arca, traz uma calça e uma camisa do seu pai.

A mudança se opera quando o barbudo veste as roupas oferecidas pela viúva. Ela o ajuda na recomposição da sua dignidade, oferecendo-se para aparar um pouco seu cabelo e sua barba.

Impressionada com o palavreado místico de Deusdete, Maria Tereza indaga, quer saber mais. Ele se empolga e fala com entusiasmo. Ela se deixa seduzir pelas palavras do profeta. Isolina, consoante com a mãe, se deixa enlevar pelo discurso do profeta. O medo se transforma em admiração. Naquele dia, mãe e filha são as primeiras almas convertidas pelo profeta do sertão.

Cento e trinta luas cheias após, Deusdete prega na sua Igreja de São Francisco do Sertão. Na sua maneira peculiar de marcar o tempo, passou dez anos em intensa atividade. A Igreja, antes um pequeno casebre que começou abrigando o Profeta e as Irmãs Maria Tereza e Isolina, agora é uma igreja de verdade, edifício de alvenaria, com altar para o santo padroeiro e bancos para os fiéis. A irmandade tem mais de cem famílias, que se reúnem três, quatro vezes por semana, dependendo da convocação do Profeta.

Maria Tereza e Isolina tornaram-se Irmãs auxiliares do Profeta e a elas se juntaram mais quatro mulheres, todas dedicadas em tempo integral às lides da Igreja. Usam batas verde-oliva, no mesmo tom da batina usada por Deusdete.

A pregação do Profeta é a mesma: adverte os fiéis para a importância da chegada do fim do século.

— Quem tiver ouvidos que ouça. O final dos tempos se aproxima. Poucos alcançarão as portas do Paraíso. Precisamos estar alerta. Quando soarem as trombetas no último dia deste século, muitos sucumbirão. Poucos seguirão o caminho do Senhor.

Dessa forma, seguia aliciando seus seguidores. No final de cada pregação, as Irmãs passavam com as cestinhas entre os fiéis, a fim de receberem os donativos.

Para implementar suas prédicas e confirmar a sua disposição de se colocar como medianeiro da salvação de almas, praticava um rito, estranho a princípio, mas agora já inserido nas práticas da sua Igreja. Uma vez por mês, a cada noite de luz cheia, o Profeta ordena aos fiéis que seja enterrado em uma cova nos fundos da igreja. De pé, enrolado em um lençol branco, é coberto de terra até o queixo, permanecendo apenas com a cabeça fora da cova. Assim permanece por toda a noite, sendo retirado ao meio-dia do dia seguinte. Nessa vigília, é acompanhado pelas Irmãs e pelos fiéis mais dedicados.

— Quando estou na Cova, purgo os pecados de todos vocês, meus amados irmãos. Passo para o chão todas as desobediências, as maledicências, os pensamentos ruins de todos. Vocês ficam livres de toda a culpa e, assim, abro as portas da salvação.

Ao ser desenterrado, sob o sol forte do zênite, está fraco não só por ter ficado longas horas ao relento, enterrado vivo, como pelo absoluto jejum a que se submete nesse período.

Mas, à noite, já está recuperado e pregando, aos brados e clamores, a palavra que anuncia o final dos tempos.

O Profeta prepara-se para a passagem do milênio. Alerta os fiéis para que permaneçam na fé, na união da sua Igreja. Amaldiçoa todos os que não acreditam na sua palavra. Incita os crentes a divulgarem sua mensagem. A igreja cresce em numero de adeptos.

A consumação de sua pregação ocorrerá no dia 31 de dezembro de 1999. De acordo com as mensagens recebidas, ele, o Profeta do Sertão, deverá ser totalmente enterrado vivo na cova que já está preparada. Um buraco de mais três palmos de fundo, atrás da Igreja, onde, depois de enrolado em um lençol vermelho, será totalmente enterrado, na presença das Irmãs e de todos os fiéis que aspiram à salvação.

— O enterro é uma ordem do Senhor, que me chegou quando meditava nos confins do sertão. Só dessa maneira, a humanidade será salva naquela hora do Juízo Final. Se meu corpo não resistir após uma hora sob a terra, o mundo acabará, e todos serão condenados. Mas, estejam certos todos vocês, que eu ressurgirei da cova, e, então, toda a humanidade será feliz. Para sempre feliz. Eu sou o novo redentor da humanidade! O redentor do terceiro milênio!

Na última cerimônia da lua cheia do século vinte, como soía acontecer em todas as noites de plenilúnio, o Profeta é enterrado de pé, a fim de passar a noite em oração, vigília e jejum. O terreno ao redor já está batido e os fiéis assentam-se no chão. Na noite clara, o ritual transcorre tranqüilo. Alguns oram, outros cochilam. De tempos em tempos, passa uma das irmãs oferecendo chá, tomado numa caneca utilizada por todos.

No recolhimento da congregação, ninguém percebe o movimento ligeiro e silencioso do inseto mortal, que, passando por entre todos os congregados, chega até a cabeça do Profeta, emersa do solo. O Profeta está mergulhado num torpor, os olhos fechados, os cabelos espalhados, projetando uma sombra ao redor da cabeça. Ferrão eriçado, o malévolo animal parece determinado em sua carreira: dirige-se diretamente para a basta cabeleira e insere-se nos seus meandros. O baixo gemido emitido pelo profeta, ao ser picado mortalmente, não é notado pelos fiéis. Como chegou, incógnito, sorrateiro e vil, o escorpião volta à macega de onde saíra.

No desenterro do dia seguinte, o Profeta está prostrado. Como das outras vezes. Mas agora, já não se recupera em tempo para o sermão da noite. As Irmãs não sabem a que atribuir o torpor, a fraqueza. O Profeta não se queixa de dores e ninguém observa o inchaço na sua nuca, local da fatal picada.

As Irmãs se preocupam com o seu estado de saúde. Acamado, não toma alimento, não abre os olhos, consome-se a cada momento. Não lhes passa pela cabeça chamar um médico. Faltam apenas cinco dias para o último dia do século e o Profeta não volta de sua letargia. Sem condições de falar nem de tomar qualquer decisão, é preparado para a cerimônia que já havia previamente anunciado.

— Devemos fazer como ele anunciou tantas vezes. Se não fizermos conforme sua vontade, será o fim do mundo. — Irmã Maria Tereza age com desenvoltura e toma iniciativa. — Sem juízo final, seremos condenados eternamente ao fogo do inferno. Só nosso Profeta poderá nos salvar. E, para isso, ele deve ser enterrado vivo.

Os demais fiéis, fanatizados e temerosos dos eventos anunciados do fim do mundo, não opuseram resistência e passaram a ajudar as Irmãs nos preparativos para o evento máximo.

Numa cerimônia simples, à meia-noite de 31 de dezembro de 1999, toda a congregação está reunida na igreja, que se tornou pequena para abrigar a todos. Espremem-se para honrar e venerar o Profeta, que está deitado na mesa simples do altar. Vestido numa sotaina vermelha, circundado por oito velas, quatro de cada lado de seu corpo. Febril, transpira abundantemente. Entretanto, não se dá conta do que se passa. A consciência não lhe voltara em nenhum momento, desde a última cerimônia da lua cheia.

Aproximando-se a hora do enterro, os fiéis começam a cantar os hinos e cânticos que lhes foram ensinados. O Profeta é colocado numa larga prancha de madeira e levado por quatro adeptos para o local no fundo da igreja, onde a cova está aberta. Com muito cuidado e carinho, é depositado dentro da cova. A sotaina larga protege seu corpo, e sobre a cabeça colocam um capuz, a fim de que a terra não lhe toque diretamente o corpo. Tudo conforme o Profeta havia planejado. Com movimentos decididos, os mesmos carregadores agora jogam terra sobre a prancha. Em poucos minutos, Deusdete, o Profeta do Sertão, é enterrado vivo.

— Daqui a uma hora, vamos desenterrá-lo. Ele ressurgirá para a redenção do mundo.

Os fiéis acercam-se da cova, onde permanecem orando, entre lamentos, choros e ranger de dentes.

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Antonio Roque Gobbo –

Belo Horizonte, 28 de fevereiro de 2001.

CONTO # 146 DA SÉRIE MILISTÓRIAS

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 13/04/2014
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