Observados

Deitado em sua cama, pálido como a morte e fraco, ele esperava. Sua espera – árdua -, era, porém, em vão. Lutava por tempo e por ar. Tempo para que pudesse viver. Viver mais um pouco; era insistente, agarrava-se a vida e a amava, mas esse tempo não lhe traria nada além de mais dor. Ar para seus pulmões, que agora já quase não eram mais pulmões; seu tumor havia tomado conta do tecido. Em meio a isso, e como quem não admite, sabia que seu tempo era muito curto.

E ele estava sendo observado. Os observadores o olhavam, atentos... esperavam o momento certo.

Sua família estava ali, e alguns amigos. Os mais próximos. Eles estavam reunidos por um motivo que todos buscam adiar, celebrando algo que ninguém queria celebrar. Esteve inconsciente durante algumas horas, mas com os aparelhos que o ajudavam a respirar desligados ele havia acordado. Não se sentia triste, não se sentia feliz, não se sentia bravo. A única coisa que ele sentia era a dor. O tumor, mesmo agora, continuava a se alimentar do pouco que restava de pulmão. Não reconhecia todos que estavam em seu quarto. No quarto onde dormiu por cinquenta e sete anos. Na cama que dividiu com sua esposa por tantas noites. A única coisa que de fato lhe era consciente era o fato de que sua esposa apertava suas mãos. Ele olhou para ela, e pensou ter visto a face de sua mãe, mesmo sabendo que isso era impossível. Ela havia morrido já haviam anos, do mesmo tipo de câncer. E mesmo assim ele insistiu em fumar.

Falta pouco, pensaram os observadores, alheios a situação.

O silêncio predominava ali. Cortado somente por suas ofegantes tentativas de trazer oxigênio para dentro. Seu fim estava próximo. Ele respirou pela última vez sem saber que seria a última vez, e então não teve mais forças para puxar o ar. Conseguiu, porém, apertar as mãos de sua esposa pela última vez. Ele amava aquelas mãos tanto quanto amava as dele, e sua última visão do mundo que conhecia desde que nasceu foi a face de sua esposa. Ela tinha feito mais do que ele julgava possível durante a luta contra seu câncer, e tinha lhe dado coragem.

E, de uma hora pra outra, tudo sumiu. Um túnel o englobou o puxando para frente, para além.

Ele ainda sentia. Não frio, nem calor, nem nada desse tipo. Não sentia mais dor, o que fez com que sorrisse. O ar não lhe era mais necessário, e a isso ele foi indiferente. Sabia, de algum jeito, que ainda estava ali. Ainda conseguia pensar e se lembrava de sua outra existência.

Assim como tudo havia sumido, tudo voltou novamente; mas a cena, agora, era diferente. Ele estava no mar, ou ao menos foi o onde ele pensou estar, e via um mergulhador que afundava, e afundava... não teve ideia de como, mas sabia que o tanque de oxigênio do mergulhador tinha um pequeno vazamento. Nosso amigo da primeira cena, que morreu com o câncer em seus pulmões, agora observava, ao invés de ser observado. Viu um peixe azul e amarelo cujo nome ele não conhecia passar por dentro de si – mais que isso, sentiu o peixe atravessa-lo – e então voltou sua atenção ao mergulhador.

Ele agitava os pés de pato, admirado com a beleza do lugar e a clareza da água. Alguns metros à frente, um navio jazia afundado. Provavelmente da segunda guerra, pensou o observador. O mergulhador adentrou o navio e ligou sua lanterna. Se ao menos o mergulhador cogitasse chegar seu oxigênio, ele poderia viver por mais alguns anos, mesmo com as sequelas do afogamento. Sua supervisora o teria salvo, teria feito respiração boca-a-boca e massagem no tórax. Mas, é claro, ele não checou: estava fascinado com o barco. Adentrou-o, seguiu por alguns corredores e portas. Minutos depois, a falta de oxigênio fez-se presente. Minutos depois disso, tudo para ele se apagou, assim como isso se fará acontecer à todos. O observado na primeira cena foi até ele, junto de infinitos outros que já foram observados, e o tocaram. Ao toque, os olhos do mergulhador se abriram. Ele era agora apenas um observador, apenas mais um entre infinitos.

Observadores que não observam a vida, não, mas observam a morte. Talvez o segundo momento mais importante para todos, visto que o primeiro é o nascimento. Os únicos momentos que realmente fazem diferença de verdade, afinal, são o nascimento e sua antítese. Tal como luz e escuridão.

Observados que, de um momento pra outro, se tornam observadores.

O mergulhador era apenas mais um, num ciclo infinito, que (agora ele sabia) um dia chegaria ao fim. A roda pararia de girar, e não haveria mais o que ser observado.

Mas – ao menos por enquanto – esses tempos ainda não haviam chegado.

Miguel Bernardi
Enviado por Miguel Bernardi em 10/04/2014
Reeditado em 22/04/2014
Código do texto: T4764199
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