NUNCA PROMETA NADA
Entrou pelo antigo edifício do grupo escolar com uma garrafa de cerveja na mão e um copo tipo tulipa na outra. Estava difícil, pois a garrafa gelada lhe adormecia os dedos e o copo cheio perigava entornar. Procurou pelo amigo Rafael Guimarães que, tinha certeza, estava numa das salas do edifício.
— É a terceira porta à direita. — Informou-lhe o porteiro, seu Geraldo, sempre solícito.
Arnaldo perscrutou indevidamente duas outras portas, antes de abrir a indicada. Na sala de aula se encontrava Rafael , preparando-se para sair, pois tudo indicava ter terminado uma aula. Ofereceu o copo já cheio de cerveja, recebido com agrado pelo amigo.
— Nunca prometa nada. — Foi o conselho, dito assim de repente, após receber o copo e antes mesmo de tomar a bebida.
Olhando bem nos olhos de Rafael, Arnaldo concordou com um leve aceno de cabeça. E acordou.
A lembrança do sonho e, principalmente, do conselho dado por Rafael Guimarães, acompanharam Arnaldo durante todo o dia. Um sonho carregado de símbolos. Arnaldo, agora com 65 anos, aparecia no sonho como nos seus 35, 40 anos. O porteiro era o mesmo seu Geraldo de há mais de 50 anos, bem como assim era o edifício do Grupo Escolar Major Avelino Lima, antes de sofrer uma grande reforma na década de 1960, que o modificou completamente. E Rafael Guimarães era o que sempre conhecera: um homem baixo e magro, elegante e simpático, cabelos grisalhos e a voz firme e de belo timbre.
Embora os personagens e o local correspondessem à realidade dos tempos a que o sonho remetia, a situação era completamente esdrúxula. Na realidade, Rafael Guimarães não bebia, nem mesmo socialmente. O fato de entrar numa escola levando uma garrafa de cerveja aberta, com um copo cheio até à borda, também jamais seria possível. Arnaldo sempre prezou a escola, que freqüentou nos quatro anos do curso primário e da qual se orgulhava muito. Durante muitos anos, na idade adulta, pertenceu à associação que ajudou o estabelecimento em suas necessidades não atendidas pelo Estado. Lembrava-se até de certa ocasião, numa quermesse realizada no pátio da escola para angariar fundos, quando foi aventada a hipótese de se venderem bebidas alcoólicas.
— Não podemos permitir isso, em nenhuma hipótese! — A recusa direta da diretora foi respaldada pela maioria dos membros da associação.
Portanto, levar cerveja para dentro da escola, e servi-la a um amigo era mais do que um sacrilégio. Era uma violação brutal das normas que regiam o estabelecimento. Por outro lado, Rafael Guimarães jamais fora professor. Homem de negócios, organizara e liderara diversos empreendimentos na cidade. Fundador da primeira emissora de rádio da cidade, em 1940, manteve-se na direção até a sua venda em 1964. Nesse período, fez de tudo na emissora: foi diretor de rádio-teatro, animador de programas de auditório, repórter nas campanhas eleitorais; na cobertura das partidas de futebol, entrevistava as pessoas mais importantes da cidade ou que por ela transitavam; era , locutor da maior parte dos programas da sua emissora. Fez de tudo. Menos lecionar. Portanto, encontrá-lo numa sala de aula, encerrando uma classe, só mesmo em sonho!
— Nunca prometa nada!
O aviso refletia bem o pragmatismo de quem o dava. Rafael Guimarães sempre fora um homem pràtico, ligado a negócios, empreendimentos, direção de associações e clube de serviços e coisas que tais. Arnaldo lembra-se muito bem de como seu pai fora ajudado por Rafael Guimarães. As dificuldades eram grandes naqueles tempos de guerra, mesmo para aqueles que, como o pai de Arnaldo, tinham profissão e morriam de tanto trabalhar.
Argemiro, pai de Arnaldo, era marceneiro, e dos bons. Trabalhava na sua pequena oficina de fundo de quintal e vivia parcamente com os poucos resultados de seu esforço. Foi quando Rafael Guimarães foi eleito presidente do Clube Social e iniciou uma grande reforma. Contratou Argemiro para fazer todos os serviços de madeira, desde o encaibramento do telhado até a mudança dos painéis de madeira das paredes e reforma de todo o mobiliário. Argemiro ficou quase um ano por conta dos serviços encomendados por Rafael Guimarães para o clube. Os pagamentos saíam imediatamente, tão logo terminada cada etapa. Recebeu até um adiantamento, que veio de uma forma inusitada.
O pai de Arnaldo começara uma reforma em sua própria casa, que ia fazendo com vagar, nas horas vagas, pagando pedreiros com moderação, tudo com muita economia. Quando chegou ao meio da reforma, teve que paralisá-la, por absoluta falta de dinheiro e também de tempo, pois estava totalmente ocupado com o trabalho no Clube.
— Por que parou a reforma? — Perguntou Rafael Guimarães, numa das muitas visitas que fazia à marcenaria.
— Não estou podendo continuar. O dinheiro acabou.
— De quanto você precisa pra terminar?
— Ah, não fiz as contas. Talvez uns dez, doze mil cruzeiros.
Rafael Guimarães não se fez de rogado. Ali, sobre a banca do marceneiro, preencheu um cheque de quinze mil cruzeiros, e o entregou a Argemiro.
— Pra que é isso? — Assustado, Argemiro se recusava a segurar o cheque. Jamais vira tamanho valor em suas mãos.
— É um adiantamento pelos serviços que você vai fazer pro Clube.
— Não posso aceitar assim. Vou terminar minha casa quando tiver dinheiro na mão. O dinheiro que o senhor me paga, vindo da reforma do Clube, é apenas suficiente para sustento da família. Assim, não dá.
— Aceite então como um empréstimo. Você paga quando puder.
Argemiro ainda relutou, mas Rafael Guimarães fez questão de deixar o cheque em suas mãos. O marceneiro ainda demorou alguns dias para descontar o cheque. Só o fez quando instado por Rafael Guimarães.
Assim era Rafael Guimarães. E, por isso, Arnaldo sempre o admirou. Quando Rafael vendeu a emissora de rádio e enveredou pelos empreendimentos imobiliários, Arnaldo seguiu de perto o sucesso de Amaral e até ganhou algum dinheiro, aplicando pequeno capital na construtora do amigo de seu pai e também seu amigo.
Portanto, o aviso vindo de um amigo absolutamente pragmático, honesto, humano, era para ser levado em consideração.
Arnaldo lembra-se de um diálogo que tivera na véspera, com uma amiga. Elvira queixou-se de inúmeros problemas pessoais e ele lhe prometera uma transformação pessoal.
— Em breve a senhora será outra pessoa. Tenha confiança e a felicidade voltará, tenha certeza.
Ah! Aí está a explicação para toda a trama onírica. Arnaldo pensa ter encontrado a explicação.
O grupo escolar é a sua formação, permanece sólido e inalterado, apesar do tempo. Ao adentrar-se com garrafa e copo de cerveja, está tentando romper com os antigos princípios, fazer coisas contra o que lhe foi ensinado. Mas procura alguém que venha confirmar tudo o que ele aprendeu e vivenciou. O antigo amigo, experiente, pragmático, se apresenta como um professor para lhe dar um importante conselho. Isto, apesar de ser agraciado com uma gentileza (ou um suborno?) que lhe é indiferente, pois jamais bebe. Acrescente-se o fato de que ele, Arnaldo, teve de abrir três portas para encontrar o amigo. Em seu subconsciente, titubeou algumas vezes no caminho, mas acabou por encontrar o que procurava: o velho e sábio amigo, com aquela eficaz recomendação, dada entre um sorriso e um olhar firme:
— Nunca prometa nada!
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 23 de outubro de 2001.
CONTO # 120 DA SERIE MILISTÓRIAS