NA MADRUGADA
— Puxa vida, que canseira !
Exausto, Fernando se escarrapacha sobre o colchão, afundando na sua maciez. Lucy, ao contrário, está animada e vai se despindo, preparando-se para o banho. Com os olhos semi-cerrados, o marido acompanha os movimentos da esposa, desabotoando a blusa, deixando a saia cair aos seus pés. Seus movimentos são graciosos e, sem querer, ela faz um ato de strip tease.
Mesmo cansado, Fernando não se furta de observar. Lucy não se incomoda, também gosta de ser admirada, está em boa forma. Ainda não completou trinta anos e conserva o viço da sua juventude: pele clara bem cuidada, cabelos pretos, compridos, cascateando sobre os ombros. Os brilhantes dentes brancos contrastam com os olhos negros, profundos. O corpo, de porte médio, é equilibrado: os seios são firmes ( após ter amamentado os três filhos); nenhuma saliência na barriga, o bumbum arrebitado e coxas bem torneadas.
— Vamos, querido, não temos muito tempo antes de escurecer. Quero aproveitar a tarde para comprar umas lembrancinhas. — Antes que ele possa responder ou esboçar qualquer gesto, ela já está debaixo da ducha. Ele levanta-se, se despe e em seguida está também sob o jato d’água, junto com Lucy.
Banham-se demoradamente, num ritual muito íntimo, de higiene, massagens e carícias, que nem sempre terminam no banheiro. Enxugam-se reciprocamente. Fernando demora-se no suave esfregar da toalha, mas Lucy escapa com agilidade das mãos do marido.
— Ué, você parecia tão cansado, agora está assim, animado... Eu, hein! Num vem que num tem!
Rapidamente se vestem como pessoas sensatas. A luz dourada do entardecer espairece sobre a cidade. Através das amplas janelas do apartamento, no décimo segundo andar do Hotel Granada, a visão alcança até as colinas distantes. Abaixo, são visíveis as ruas que sobem e descem, pelas quais os pitorescos bondinhos circulam com estridor.
— Você vai com essa camisa fina? — Vestindo a grossa blusa de lã, Lucy estranha a coragem do marido.
— Está uma tarde linda de morrer, vou aproveitar um pouco do sol.
— O tempo aqui muda rapidamente, você sabe. Melhor se agasalhar.
É verão em San Francisco. Os dias se alongam, o sol se põe pelas 22 horas. A tarde está clara e luminosa. Passa um pouco das sete, e ainda falta muito para a noite descer sobre a cidade. Lucy tem razão quanto à inconstância do tempo: mesmo no verão, ao anoitecer, costuma descer uma névoa gelada, que rapidamente cobre não só a cidade mas toda a região da baía, envolvendo-a com um manto gelado.
Vestidos e calçados, descem até o saguão do hotel. Quando saem pela porta, o impacto do ar frio faz Fernando tremer. Enganou-se redondamente ao imaginar que a tarde tão luminosa estivesse cálida. Na realidade estava tão fria e úmida que atravessava as rouas e entranhava pelos ossos. Caminham de braços dados, ele procurando um pouco de calor no corpo de Lucy. Inutilmente.
— Brrrrr! Vou ter de subir e vestir um agasalho.
— Estava certo Mark Twain quando disse que aqui ele passou o verão mais frio da vida. — Lucy esnoba o marido com o que aprendera na aula de inglês.
Caminham mais um quarteirão, mas Fernando não agüenta. Entram numa loja de souvenirs, onde Lucy fica escolhendo alguns mimos enquanto ele volta ao hotel para vestir um casaco comprado dias antes, em Bekerley, a fim de enfrentar o frio da cidade.
Na primeira viagem fora do país, haviam optado por unir o útil ao agradável: passear e estudar. Ambos estudantes de inglês, veio bem a calhar um curso intensivo de quatro semanas, com direito a teste de nível superior e certificado de alta cotação. Aproveitavam os fins-de-semana para viajar por toda a Califórnia e incursões ao estado de Nevada. Já estavam na última semana, e tinham aproveitado bastante: visitaram San Diego, Los Angeles, a Disneylândia, Holywood, Sacramento (a capital do estado), os parques nacionais, Lake Tahoe. E, naturalmente, vasculharam San Francisco e vizinhanças, visitando todos os pontos de interesse turístico.
Curioso a respeito de tudo, Fernando visitara o Departamento de Estudos da Baía de San Francisco, onde o exército americano mantém uma unidade científica com simulação miniaturizada de todas as correntes da baía, ao mesmo tempo que se encarrega da limpeza de suas águas. Impressionava-se com esse tipo de conhecimento, mas esquecia-se do básico, como usar um agasalho grosso mesmo nas tardes mais ensolaradas.
— Amanhã quero voltar ao Fisherman’s Wharf . Lá tem umas coisinhas maravilhosas! — Lucy não perdia o pique e repassava os lugares, não se cansando nunca de procurar (e encontrar) os delicados presentes para a família e para as amigas.
Voltam tarde ao hotel. Agora, ambos estão cansados de caminhar nas ruas geladas. Caem na cama e adormecem de imediato.
De repente, são acordados por gritos e barulho de objetos sendo quebrados. Estremunhados, descerram as cortinas das janelas. O barulho vem de um apartamento no prédio fronteiro, situado no mesmo nível do quarto que ocupam. As luzes estão acesas e, assustados, podem ver claramente o que está acontecendo.
A cena é típica do american way of life: o forte americano, alto, loiro, cabelos longos e barba por fazer, está quebrando os objetos do apartamento. Parece embriagado e a cada objeto arremessado contra as paredes, solta um grito de guerreiro kung fu. Numa seqüência rápida, acaba com os objetos sobre os móveis. Passa, então, a quebrar os próprios móveis. Fernando se assusta e Lucy, sem querer, grita, quando o aloprado joga o aparelho de televisão contra a janela, estilhaçando os vidros, quebrando o caixilho. O impacto sobre o asfalto da rua arrebenta o aparelho em mil pedaços.
— Vamos avisar a portaria do hotel, eles têm de chamar a polícia! — Lucy está apavorada, jamais viu coisa igual.
— Calma, querida. O porteiro lá em baixo já deve estar tomando as providências.
O bêbado continua jogando coisas através da janela: aparelhos de rádio, uma pilha de long-plays, uma cadeira, uma mesinha de centro. Sempre gritando, vai para o quarto. Abre os armários e inicia uma limpeza geral, jogando roupas, calçados, enfim, o que encontra pela frente, através das janelas quebradas.
A cena, por si só, é de uma dramaticidade única. A nota surrealista vem a seguir, quando aparece, vindo não se sabe de onde, um casal de velhinhos com um carrinho de super-mercado. Entre um arremesso e outro de objetos e roupas, o velhinho corre por entre os cacos e estilhaços, e vai pegando o que pode. Principalmente roupas e calçados. Com agilidade inesperada, corre e enche o seu carrinho. A mulher, diligentemente, vai acomodando a “mercadoria” . Até que uma peça de mobília do quarto estoura bem perto do velhinho. Uma praga intraduzível chega até Fernando e Lucy, que agora estão assistindo de camarote à cena, meio dantesca, meio burlesca.
Tudo numa rapidez vertiginosa. Em seguida ouvem-se as sirenes dos carros policiais que chegam ao local do quebra-quebra. São quatro viaturas, cada qual vindo por uma rua diferente, chegando à esquina ao mesmo tempo, como se cronometradas para tal.
— Putz, o cara tá ferrado! — Comenta Fernando.
— Olha só quantos policiais estão descendo do carro. Vão acabar com ele. Coitado! — Lucy tem pena do baderneiro.
Surpreendentemente, apenas uma viatura com dois policias permanece no local. As demais, ao notarem o tipo de desordem, se vão. A esta altura, muitas janelas dos edifícios adjacentes estão com as luzes acesas, diversos vizinhos assistem ao espetáculo. Do próprio edifício onde está o destruidor, descem alguns moradores, que se encontram com os policiais. Parece que o maluco não tem mais o que quebrar, parou de jogar coisas pelas janelas.
Os policiais sobem até o apartamento. Entram e partem para cima do cidadão, visivelmente embriagado. Subjugado, é levado para a rua, carregando uma vassoura e uma pá de lixo. Ainda cambaleando, é obrigado a limpar toda a rua, catando os pedaços maiores, varrendo os pequenos estilhaços. Coloca tudo dentro do enorme recipiente de lixo.
O trabalho dura mais de meia hora. Os velhinhos desapareceram tão misteriosamente como chegaram. Pouco a pouco, as luzes da vizinhança vão se apagando.
— A bebedeira do cara até já passou, depois dessa tarefa de limpeza.
Lucy volta a deitar-se. Mas Fernando está curioso para ver até o final essa estranha ocorrência. Observa com atenção.
A rua limpa, sobem policiais e baderneiro para o apartamento. Os agentes da lei conversam com o infrator, que, agora, parece estar sóbrio. Um policial escreve numa prancheta, talvez um formulário. Passa para o desordeiro, que também escreve (assinando?) algo.
Os agentes da lei simplesmente descem do apartamento, deixando ali o autor do quebra-quebra. Entram no carro e saem desabaladamente, a sirene plangente quebrando o silêncio da madrugada.
ANTONIO ROQUE GOBBO
Belo Horizonte, 23-fev.2001
Conto # 74 da Série Milistórias