A sina das Marias
Maria era seu nome de batismo. Nascida em 1974. 40 anos de idade. Aprendeu a usar o computador nem bem dois anos. Primeiro movimento, criar um tal de Facebook. Todo mundo tinha Facebook, ela também precisou de um.
Tinha uma rotina. Alimentar os filhos para a escola. Lavar a louça e então, abrir o Facebook, e ali permanecer até a hora de fazer o almoço. Apesar de adorar ficar online, pouco comentava ou curtia as postagens. Também não compartilhava muito. Seu prazer era ser voyer das postagens alheias.
Um dia isso mudou. Foi em uma tarde de chuva. A casa estava limpa, as crianças estavam fora, o marido estava dormindo. Maria gostava de olhar, uma e outra vez, fotos de seus amigos. Admirar peitorais alheios, desejar bíceps musculosos ou criticar a beleza feminina. Abriu primeiro o álbum de fotos de Márcia, sua melhor amiga. Na primeira foto Márcia estava de perfil, metade dos seios recheados à mostra. E Maria não se conteve no pensamento: "Eu sei que esses peitos são murchos". Foto seguinte, "Que nariz ridículo. Faz uma plástica aí, Capiroto". E algumas fotos mais, ela cansou. Foi ver as fotos de Marcelo, velho amigo de infância. Primeira foto, ele e a mulher, "Mulherzinha ridícula, te chuto o rabo em gostosura. Esse homem deveria ter sido meu, vadia". Foto seguinte, ele sem camisa, "Te lambo inteiro, seu gostoso", foto seguinte, a filha dele, "Vadia igual a mãe". A seguinte foto ela não viu. O marido acordou querendo sexo.
"Esse nojento quer fazer sexo de novo". "Nem sabe mexer direito". "Que hálito podre. Escove esses dentes, seu nojento". "Melhor fingir que já gozei, pra ele acabar logo". "Goza igual um porco, roncando". "Agora dorme, nem pra transar direito. Nunca gozei com você seu estúpido". "Casar com pobre dá nisso, crianças nojentas, marido nojento". "Que nojo. Vou tomar banho".
Quando Maria voltou a abrir o Facebook, lá estavam, todos os seus pensamentos publicados. Todos. E os comentários? E as perguntas? E a falsidade? Uns elogiavam sua coragem, a parte ofendida desferia blasfêmias merecidas. Maria não podia acreditar. Ficou horas sentada na frente do computador, tentando entender o que tinha acontecido. E excluir os comentários? Impossível. E a cada pensamento seu, uma nova publicação surgia. "Que aconteceu?" "Isso não tá acontecendo comigo". Só que estava. O marido abriu o Facebook a noite, do celular leu e chorou com os comentários. Coitado, ainda apaixonado. Ter sua intimidade exposta assim. As crianças ficaram entre magoadas e divertidas. "Ela lamberia o tio Marcelo".
Até hoje, se você abrir a página de Maria, vai poder ver seus pensamentos. É impossível excluir a conta, e após o divórcio e a solidão, sua página só deixou de receber atualizações quando Maria morreu, morreu limpamente, com uma facada no estômago.
E assim, outra Maria, em outro lugar qualquer da minha vasta imaginação, passou a ter seus pensamentos publicados no Facebook.
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