O ÍNDIO SURDO

Lem-Kiruá prepara-se para sua última viagem. Sentado na areia fina da margem do poço, sob o troar da Iara-Meme, a mais alta cachoeira , a "mãe das águas", aguarda em silêncio absoluto. O rugido das águas não incomoda Lem-Kiruá. Tampouco a densa névoa que se eleva da lagoa formada pela cachoeira. Já faz mais de uma lua que o índio da grande nação Kra-Nuá-Perê ali se encontra, mergulhado em profunda meditação, irmanado com a natureza, sua irmã, à espera.

Pela sua mente passam todas as lembranças dos últimos tempos, acontecimentos que determinaram o seu degredo para o sopé do grande monte Lomo-Kata-Katá , de onde surgiram todas as coisas: a terra, a floresta, os animais, os índios, tudo, enfim.

Lembra-se com detalhes (e a cada dia a memória se torna mais viva) da tribo onde viveu por anos de paz e tranqüilidade. Filho do chefe Amam-Kiruá era o melhor caçador entre os irmãos, todos os índios da taba.

—- Lem-Kiruá tem de estar pronto para suceder grande chefe Amam-Kiruá. Grande-Irmão-que-habita-montanha Lomo-Kata-Katá ordena preparação. — ¬¬¬¬Assim falou o Irmão-Sábio, o mais idoso da tribo, que decidia sobre os usos e costumes de todos os irmãos e irmãs. O pai, idoso, centenas e centenas de luas já vivera. Alquebrado, não ia mais à caça nem tinha visão para a pesca. Logo iria fazer a Grande Viagem da qual ninguém voltava.

Sim, Lem-Kiruá estava se preparando. Já escolhera a Grande Árvore ao pé da qual todos os rituais de iniciação seriam realizados. O Irmão-Sábio aprovara a escolha do magnífico tronco coroado pela vasta copa. Verdadeiro chefe da floresta seria o irmão de Lem-Kiruá no reino das árvores, seu protetor nas caçadas, e receberia em seus galhos mais altos as manifestações de desaprovação e ira, os raios e os trovões mandados pelo Grande-Irmão.

Ainda estão frescas na memória de Lem-Kiruá o dia em que, voltando da caça, viu do alto do espigão de Lomo-Kata-Katá a grande canoa imóvel no meio do rio. Uma canoa menor, cheia de guerreiros brancos, dirigia-se para a margem, na direção da maloca. Todos os homens eram guerreiros na concepção do Irmão-Sábio, que passava todo o conhecimento do mundo para os habitantes da tribo. Lem-Kiruá sentiu a tragédia no ar. A presença daqueles guerreiros não era coisa boa. Significava desgraça. Morte.

Desceu depressa a trilha. A distância era grande, tinha de correr muito para chegar à taba antes dos guerreiros brancos. Pulando agilmente, saltando sobre raízes e troncos caídos, pode ouvir o alarido dos seus irmãos, os gritos estranhos dos guerreiros brancos, barulhos esquisitos e potentes como o troar pipoqueante de um trovão quebrado em mil pedaços. Um ra-tá-tá-tá sem fim, intercalado por zunidos de flechas , gritos de agonia e berros inomináveis de medo e terror.

Por mais que se esfalfasse na corrida, não conseguiu chegar à taba a tempo de ajudar seus irmãos na defesa contra os guerreiros brancos. O que viu ao sair da escuridão da floresta para a clareira da maloca encheu seu espírito de ódio. Por todos os lados jaziam irmãos, no solo ou sobre as redes, debruçados sobre os utensílios ou dependurados grotescamente nas estacas de secar peixes. Os guerreiros já tinham destruído sua taba, executado a maioria dos seus irmãos. Dentro de uma oca, ouviu o chorar de uma criança. Destruição por todos os lados. Outra cabana, no lado oposto por onde chegara, ardia em chamas.

Os guerreiros brancos já haviam partido. A ação rápida tomara de surpresa todos os irmãos da tribo. Após o massacre, rapidamente voltaram à margem do rio. Lem-Kiruá não podia vê-los, mas escutava os gritos das irmãs que por certo os guerreiros levavam como troféus de seu ataque. Agindo por instinto, o futuro chefe da taba correu ao encalço dos destruidores. Ao chegar à margem, os guerreiros brancos aproximavam-se, na sua piroga pequena, do grande barco e faziam subir três irmãs da tribo, que relutavam e gritavam, resistindo por todos os meios ao cativeiro.

A vista penetrante de Lem-Kiruá fê-lo reconhecer entre as três irmãs prisioneiras a doce Kanaã-Eluá, sua companheira. Ficou louco de raiva e de dor. Tinha de resgatar as irmãs e a companheira do poder dos terríveis guerreiros brancos. Preparou-se para mergulhar, quando um barulho ensurdecedor veio do céu. Voltando a vista na direção do tremendo trovão, viu uma enorme ave, grande picaú branca com reflexos prateados, descendo na direção do grande barco. Mergulhou assim mesmo, tinha de salvar Kanaã-Eluá a qualquer custo. Só ele seria capaz de fazê-lo.

Em vigorosas braçadas, foi se aproximando do grande barco, por debaixo d'água, com cuidado para não ser visto. E não podia, portanto, saber o que acontecia na superfície do rio e acima, nos ares.

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-- Atenção, base. Aqui é a unidade APT-34, estamos sobrevoando um braço do Rio Japurá. Movimento de barco rio acima, vamos averiguar. Informe posição de barco em operação na região. Câmbio.

O helicóptero do Exército sobrevoava uma das mais desoladas regiões da Amazônia, no extremo leste, próximo à fronteira com a Colômbia, e estava no encalço de traficantes de drogas que circulavam pela região.

-- Base para APT-34. Negativo quanto a barcos nossos na sua área de ação. Prossiga na operação. Câmbio.

O piloto do helicóptero fez sinal para o companheiro ao lado, indicando o reflexo do barco ancorado no meio do rio. Ambos ficaram mais atentos. A embarcação era suspeitíssima, sem nenhuma identificação. Ao passarem sobre a clareira na mata, ocupada por uma remota tribo de índios Kranuá-Êrê, observam uma das choças em fogo. Dirigem-se para o barco que está sendo abordado por um bote .

-- Unidade APT-34 para base. Estabelecido contato visual com barco não identificado da classe KPJ. Trata-se evidentemente de traficantes. Um bote está a estibordo. Alguns homens tentam embarcar mulheres índias. Elas lutam e resistem aos homens. Estamos a 200 metros e vamos descer mais.

Da possante lancha, os bandidos vêem o helicóptero se aproximando. Num átimo disparam suas armas instaladas no convés. O helicóptero faz uma volta estratégica, a fim de se colocar além do alcance das armas disparadas pelos traficantes. Localiza-se atrás do barco, sobre a serpente prateada em que se transforma o rio ao refletir a luz do sol.

-- Rápido, acione as bombas de profundidade ! -- ordena o piloto.

Imediatamente dois jatos de fina fumaça partem do helicóptero, indicando que dois pequenos mas potentes foguetes com bombas de profundidade foram lançados na direção do barco.

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Lem-Kiruá é ágil na mata como no rio. Nada rápido, piramutá em forma de homem, vai por sob água do rio, não quer ser visto pelos guerreiros brancos. A sombra da gigantesca picaú passa por sobre o rio, indo de uma margem a outra, escurecendo por momentos a visão de Lem-Kiruá. Está a uma centena de braçadas da piroga menor que se aproxima rapidamente da grande piroga. Seus pulmões pedem ar, está no limite. Pensa em subir à superfície. Percebe uma flecha ou lança que entra por sob a água e voa silente na direção do grande barco. Deixa atrás uma réstia, um caminho de pequenas bolhas de ar. É a última consciência do valente Lem-Kiruá.

O foguete lançado pelo helicóptero mergulha no rio e procura o alvo, inteligente parapitanga no encalço de sua presa. O alvo imóvel do grande barco é facilmente atingido pelo foguete, disparado com pressa e precisão pelos tripulantes do helicóptero. Um cogumelo imenso cresce a partir do casco da embarcação na direção da superfície. Do bojo da grande nuvem explosiva saem estilhaços de madeira e metal, de corpos humanos e jatos de óleo inflamado. O pequeno bote amarrado ao lado também é atingido, levantado ao ar e jogado a muitos metros de distância. Os guerreiros brancos, juntamente com as prisioneiras, são igualmente lançados ao ar. A gritaria infernal só termina quando os corpos se chocam com a superfície do rio. Os que não morrem na explosão sucumbem e se afogam nas águas cheias de detritos, manchadas de sangue, estriadas por negras manchas.

Sob as águas, o impacto da explosão atinge centenas de metros ao redor. A concussão se espalha numa onda circuncêntrica que vai causando destruição e morte. Lem-Kiruá , atingido por essa onda mortal, é jogado para o alto. Privado dos sentidos, cai inerme sobre o raizame que cresce ao longo da margem.

-- Unidade APT-34 para base. Barco de traficantes completamente destruído. Sem sinal de sobreviventes. Traficantes atacaram aldeia de índios Kra-Nuá-Perê. Alguns índios morreram, muitos estão feridos. Combustível em nível crítico, solicito autorização para retornar à base. Câmbio.

-- Base para APT-34. Volte à base. Câmbio e desligando.

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Profundo silêncio abateu-se sobre o rio e a mata após a terrível batalha. Pássaros, insetos, os animais, as árvores, tudo quedou-se num silêncio sinistro. Lem-Kiruá voltou a si lentamente. O silêncio era opressivo. Sua cabeça parecia estourar de dor e de... silêncio. Gritou a sua angústia, raiva e dor, e não ouviu sequer o próprio grito. Movimentou-se com cuidado, por sobre as raízes, chegou à trilha. Na superfície do rio ainda boiavam pedaços de madeira, corpos de guerreiros.

Lem-Kiruá observou atento os destroços. A morte veio do céu, foi a grande picaú enviada pelo Grande Irmão para destruir e matar seus irmãos e os guerreiros brancos, pensou. Mas, por quê ? E agora, este silêncio... tudo estava quieto, até mesmo o irmão vento, passando pelas altas copas e pela superfície do rio, obedecia à ordem de silêncio - imposta pelo Grande Irmão.

Com os olhos penetrantes da urubitinga, Lem-Kiruá vê o corpo de uma irmã flutuando de costas, os longos cabelos negros fluindo na superfície do rio, acompanhando a correnteza. Novamente em fortes braçadas atravessa a pequena distância e traz o corpo da irmã para a margem.

Irmã? Surpreso, está com sua amada Kanaã-Eluá nos braços. Tomado de ódio e desespero, carrega- a para a maloca. O Irmão-Sábio vai trazer de volta sua Kanaã-Eluá. Ele dará sua própria vida para devolver a vida a Kanaã-Eluá.

Como um agouro, o silêncio acompanha Lem-Kiruá. Nada ouve. Seus passos pela trilha, o crepitar do fogo que queima o sapé da palhoça incendiada, os lamentos dos irmãos feridos. Nenhum som da natureza, nem sua própria voz. Entra na maloca, deposita o corpo inerte da companheira numa rede. Ajoelha-se ao seu lado, debruça-se sobre seus seios, afaga-lhe os cabelos molhados. Dor, desespero, ódio, vingança, tudo se mistura em sua cabeça. Não ouve os passos do Irmão-Sábio, que se coloca de pé, quando chega a sombra da noite sem fazer ruído.

-- Grande-Irmão-que-habita-montanha está zangado com nossa gente. Mandou guerreiro branco para destruir e matar nossos irmãos, nossas irmãs.

Lem-Kiruá não ouve, mas sente a presença do Irmão-Sábio. Volta-se e olhando bem no fundo de seus olhos negros, ainda de joelhos, implora:

-- Peça ao Grande-Irmão que devolva a vida de Kanaã-Eluá. Dou minha vida em troca.

-- Não convém fazer as coisas contra a vontade do Grande-Irmão. Exigiu a vida de muitos irmãos e irmãs e muitas coisas mais vai exigir.

Lem-Kiruá nada ouve. Só se dá conta de que o Irmão-Sábio fala pelo movimento de seus lábios.

-- Lem-Kiruá não escuta. - confessa ao Grande Irmão.

-- Grande Irmão tirou de Lem-Kiruá o dom de ouvir? Maior desgraça caiu sobre você, filho de Aman-Kiruá. Se Lem-Kiruá não pode ouvir, deve deixar a tribo, está proscrito. Não faz mais parte da grande nação de Kra-Nuá-Perê.

Lem-Kiruá percebe o que Irmão-Sábio está lhe comunicando. Por outros sentidos que não o da audição, compreende a sentença de separação que lhe foi imposta. Sabe que constitui grande maldição não poder ouvir os sons; não escutar a natureza, o farfalhar das árvores, os gritos e pios das aves, as diversas línguas dos irmãos-animais, o troar da Grande-Cachoeira, os estalos do raios e o troar dos trovões. Não ouvir mais as conversas, os risos, as ordens, nada mais . O mundo do silêncio é um mundo maldito e aquele que não ouve não pode viver entre os irmãos que escutam.

Um grande mistério, um tabu sagrado. O Grande Irmão priva do dom de ouvir os entes que merecem um castigo, uma punição. Ken-Kiruá sabe. Mas ele? Por que ele? Na sua simplicidade, não aceita este castigo sem motivo. Curva-se, entretanto, ao costume dos irmãos. A pena é o banimento, o desterro. Deve deixar a tribo para sempre.

Não participa sequer das cerimônias fúnebres de seus irmãos mortos, da sua Kanaã-Eluá. Nada mais importa, se muitos morreram, se muitos ficaram feridos e inutilizados. Sua sina é única. Está agora afastado do convívio dos irmãos. Só lhe resta o ritual da despedida, ao qual se submete sem se importar com nada mais.

O Homem-Sábio prepara as poções e a tinta especial para a cerimônia de partida de Len-Kiruá. Da casca da apuirana e das folhas do timbó prepara a cabaça da bebida que o irmão deverá tomar. Faz também, com o urucu, a tinta amarela que Ken-Kiruá passará por sobre o corpo, ao deixar a tribo.

Lem-Kiruá precisa de ajuda para a grande separação. Bebe a poção e viaja tranqüilo pela última vez.

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Lem-Kiruá está pronto para a viagem derradeira. Na verdade, a separação da tribo significa a separação da vida, a viagem última para a maloca do Grande-Irmão. Sentado na areia fina e branca, não sente fome nem sede, nem medo. Já não conta mais quantos dias o sol e a lua passaram pelo céu. Ameniza a inanição com pequenos goles da poção, que é mistura de plantas entorpecentes. A inanição e a bebida vão colocá-lo em comunicação com os espíritos e, portanto, com sua amada Kanaã-Eluá.

A mata respeita o retiro de Lem-Kiruá. Pássaros, animais e insetos se afastam do local. Somente as águas da grande cachoeira continuam movimentando-se, num estrondo insuportável, que Lem-Kiruá não pode ouvir. Os perigos da selva se afastam do índio num mistério da mata e em respeito ao seu ritual máximo.

O espírito de Lem-Kiruá se afasta cada vez mais de seu corpo, por períodos que vão se alongando. Ao raiar do décimo dia, Lem-Kiruá olha diretamente o sol, que emite raios violetas. A transformação total e definitiva se verifica. Lem-Kiruá vê seu corpo se debruçar para a frente, tombando lentamente na areia. Seu espírito se eleva, acima das copas das árvores, acima da queda d'água, acima das nuvens, para cima, para cima, sempre para cima. A luz violeta vai se intensificando e clareando, mudando para um branco intenso, no centro da qual está Kanaã-Eloá sentada placidamente sobre os joelhos, à espera de Lem-Kiruá. À medida que se aproxima do intenso sol branco e de sua amada, um som de infinitas variações, música suave de tambores e flautas chega até Lem-Kiruá.

Quando chega, finalmente, ao fim de sua jornada, junto de Kanaã-Eloá, ele ouve, ele vê, ele sente : tudo é luz, música, paz e amor .

ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO = BELO HORIZONTE = 8 DE AGOSTO DE 2000

CONTO # 041 DA SÉRIE MILISTÓRIAS = PUBLICADO EM “O ESPIÃO DE BAGDÁ”

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 08/03/2014
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