Ela acorda
Ela acorda, um pouco desorientada, e ele está lá, vigiando, cuidando-a. O quarto é enorme, tudo bem arrumado. Ela quer lembrar quem é, mas não consegue. Ele pede que se acalme, diz que tudo voltará ao normal em breve. E ela volta a dormir.
Quando desperta novamente, levanta-se e anda pela casa, espantada com a grandiosidade do lugar, não imagina que tipo de pessoa viveria ali, mas na casa só se encontram ambos. Ele a acompanha sempre, cuida dela, mantém a casa arrumada e a acompanha nos passeios pelo jardim, cuja paisagem estende-se além do alcance da visão.
Os dias passam e ela está feliz, apesar dos problemas de memória. Ela é paciente, tem um jeito calmo e paciente de observar as coisas ao seu redor, como se fosse a primeira vez que visse as coisas comuns à sua volta. Admira os objetos e elementos da natureza deslumbrada com a beleza das cores, cheiros e sensações a que é submetida numa viagem através dos sentidos.
Sem a possibilidade de se comunicar com mais ninguém, ela tem, porém, acesso a informações do mundo exterior (televisão, rádio e uma vasta biblioteca), mas constantemente é possuída pela sensação de estar vivendo num mundo à parte. Quase dois meses transcorrem com essa sensação estranha, e então começam as perguntas ao companheiro. Ele explica que há um problema com sua memória, mas que as instruções dadas pelos médicos foram para que deixasse as coisas fluírem naturalmente, as lembranças virem à tona sem sugestões ou informações de fora, e que isso poderia levar muito tempo.
Ela colabora. O tempo passa. Ela lê, pensa, se informa. Começa a ficar assustada. Não sabe que tipo de relação tem com aquele homem. Ele se dedica como um irmão, mas não apresentam semelhanças físicas. Ela sentia que o amava de certa maneira, no fundo, ela queria que ele se apaixonasse por ela, mas ele não demonstrava nenhum interesse amoroso de âmbito sexual, nenhum gesto que indicasse segundas intenções, apenas dedicava-se ao seu conforto. Cuidados que, pensando bem, pareciam de alguma forma até exagerados. Dormiam em quartos separados apesar de terem intimidade total. Ele era inteligente, sensível, e a convivência com seu charme fez com que ela desenvolvesse um certo grau de atração.
Mas aquele ar de mistério já estava cansando. O tempo passava, sua memória não melhorava. Ela não sabia nem mesmo seu nome (ele a chamava apenas de querida) ou em que lugar do mundo vivia, aquela propriedade parecia uma ilha isolada. Ele começava a ficar sem desculpas, dizia que viagens estavam proibidas até que melhorasse, evitava o assunto, seu comportamento mudava frente a situações em que ela insistia saber de alguma coisa.
A dúvida, a desconfiança e o medo cresciam. Não via uma única cicatriz em seu próprio corpo. Por que a perda de memória? Algum acidente? Algum problema neurológico? Ele não esclarecia nada.
Lendo, ela estudou perfis psicológicos de psicopatas, e o comportamento dele se encaixava em muitos pontos. O desespero tomava conta de sua alma. Começava a ver sua situação sob outra perspectiva. Imaginou um louco apaixonado e obcecado, idolatrando-a, sequestrando e levando-a para longe de tudo e de todos, fazendo uma lavagem cerebral, sedando-a. Seria isto imaginação ou lembranças reprimidas? Os dias agora passavam com medo e paranoia, e ela sentia que ele sofria em silêncio vendo-a assim.
Um dia, não mais suportando aquela situação, ela o chama para uma conversa franca e conta-lhe sobre seu medo e suas ideias. Ele mostra-se profundamente perturbado e entristecido e, com medo de alguma reação desesperada dela, resolve contar a verdade, elogiando antes sua coragem de enfrentar o problema sendo sincera com ele, conquistando mais ainda sua admiração. Era o tipo de atitude nobre e delicada que confirmava sua identidade, disse ele.
O homem então revela uma história fantástica, sobre uma lenda sobre o fim do mundo, causado por uma espécie de anticristo benigno. Não um demônio, mas um anjo que ceifaria vidas com delicadeza, dando a todos uma morte prazerosa. Uma profecia mantida em segredo, que falava da beleza que destruiria o mundo e seria o fim da civilização como é conhecida. Uma criatura não-nascida, vinda de um lugar do universo onde vivem as divindades adoradas no passado. Segundo escrituras encontradas há milênios no centro do planeta, sua vinda seria o prenúncio do fim dos tempos. Sua luminosa materialização na Terra, já adulta e sem memória, criaria a necessidade de um – na melhor tradução possível – guardião desapaixonado, que lhe daria um nome para ser gritado pelo mundo.
E disse finalmente: – Pois dou-te agora o nome Valentina, em homenagem a alguém que amei e que destruiu minha capacidade de amar novamente e viver plenamente, por conta de sua beleza e graciosidade, que a meus sentidos parecia não encontrar comparativos em ninguém.
“Meu medo tinha razão de ser, ele é completamente louco” – pensou ela – “mas talvez ainda lhe reste um pouco de razão, afinal, ele disse que eu agi com delicadeza e isso foi bom para que me contasse suas razões, mesmo sendo essa história insana e fantasiosa. Talvez se eu pedir, ele me deixe ir embora”.
Disse ela então: –Tire-me daqui para que eu possa cumprir meu destino!
Ele atendeu, e a acompanhou numa caminhada por horas, até um galpão onde uma caminhonete estava guardada. Ela tinha medo de prosseguir, mas confiar nele era sua única opção se pensasse em sair dali.
Viajaram a noite inteira, em silêncio, por uma estrada deserta, até que chegaram a uma pequena cidade chamada Começo do Fim. Ele pediu para ela esperar amanhecer antes de sair do carro. Uma hora depois o sol desponta no horizonte e ela se despede, ainda olhando para trás para agradecer a ele, dizendo “obrigada” com um sorriso encantador nos lábios. Com lágrimas nos olhos, um sorriso desponta no rosto dele, pois essa é a única reação possível diante daquela gentil criatura.
Da janela do carro, chorando, ele a vê chegar ao meio da rua, bem no centro da cidade, e tirar o sobretudo com capuz que havia recebido. Seus cabelos dourados reluzem ao sol e o vento brando marca seu corpo sob a camisola esvoaçante, enquanto empurra os últimos vestígios da névoa matinal. Ouve-se o abrir dos portões do comércio local, e algumas pessoas começam a se movimentar, aproximando-se da mulher.
Então ele dá a partida no veículo e volta para casa, já sabendo o que vai encontrar ao chegar em sua propriedade, no começo da tarde: Ligará a televisão, onde os noticiários falarão da loucura que se apossou do mundo por causa de uma mulher de beleza tão estonteante que todos que a contemplam perdem a razão. Homens, mulheres e crianças, todos enlouquecem quando a veem.
E mesmo através de imagens artificiais que percorrem o mundo, as reações de quem a vê serão as mesmas. Alguns começarão a chorar, outros a gritar seu nome, outros cometerão suicídio, uns simplesmente não suportarão e cairão desfalecidos no chão, outros ainda sairão correndo em qualquer direção. As autoridades não saberão o que fazer, ninguém conseguirá detê-la, pois ela age sem fúria, não conduz nem atrai violência. Qualquer tentativa de aproximação será inútil, pois o mínimo contato visual desencadeia o processo de perda da racionalidade.
O caos será total: carros se chocando pelas ruas, pessoas que se jogam de cima dos prédios, aviões despencando dos céus, pessoas incendiando suas casas, ninguém é capaz de manter a sanidade diante da maior ameaça já surgida no mundo, uma onda de loucura que se alastra como uma epidemia incontrolável. Todos os que a enxergam imediatamente pronunciam seu nome: Valentina. E num êxtase coletivo, ficam apaixonadamente perdidos em sua loucura prazerosa, como se finalmente encontrassem um motivo final e absoluto para viver ou para morrer.
E depois de acompanhar os boletins ininterruptos pela televisão até o anoitecer, com sono, o homem desligará o aparelho e dirá para si mesmo: “Para o mundo, assim como para mim, só restará um arremedo de vida após Valentina, porque o amor pode ser realidade, mas a paixão será para sempre uma ilusão”.