ACIDENTE RODOVIÁRIO

[Uma Versão da Morte de JuscelinoKubtschek]

— Vamos, Geraldo, pé na tábua. — Bateu a porta do Opala Diplomata e sorriu para o motorista.

— OK, doutor. O senhor manda.

O domingo estava claro, havia tomado um café reforçado. Sara insistia sempre numa refeição forte pela manhã, que teimava em chamar de breakfast: aquela abundância de quitandas, queijo, requeijão, o café forte passado na hora, leite, coalhada, quitandas.

— É demais para um homem só ! — Brincou, incapaz de experimentar sequer de tudo um pouco.

Olhava para a beleza da manhã, brilhante e colorida a não mais poder. Para ele, um eterno otimista, sempre de bem com a vida, era sinal evidente de uma excelente viagem.

— Então, Geraldo, tudo nos eixos?

— Tudo legal, Doutor. A máquina tá nos trinques, a estrada deve estar com pouco movimento agora de manhã. Vai ser bom.

O Doutor encostou-se folgadamente no assento do carro, confortável, estofado em legítimo couro. Espichou as pernas e fechou os olhos, como se cochilasse. Lembrou-se do convite da véspera.

— Por que não aproveita, já que estamos aqui no aeroporto, e embarca em um avião para o Rio? Venha comigo, estou de partida e consigo um lugar. — O convite era de seu amigo Adolfo, na sua despedida no Aeroporto de Congonhas.

— Obrigado, prefiro o carro. Tenho mais tempo para matutar. — Abraçou o amigo, de quem não escondia o vezo por viajar de carro.

— O barulho do motor embala o passageiro, ao mesmo tempo que desperta os sentidos do dedicado motorista de há muito anos.

Já fazia mais de trinta e cinco anos que Geraldo era o chofer do Doutor. Desde os tempos quando ele era prefeito de Belo Horizonte. Agora, estava sentado ao seu lado, no banco da frente. Só se assentava no banco traseiro quando ia para alguma cerimônia oficial ou estava acompanhado da esposa ou das filhas.

Este era um carro especial, fora o Doutor quem lhe dera de presente, antes de partir para o exílio. De Paris, o Doutor mandou-lhe um telegrama, explicando-lhe tudo. Era a realização de seu sonho, ter um carrão como aquele. Sentiu muito a ausência do Doutor, mais do que patrão, um amigo do peito. Cuidara do carro com cuidado inusitado, como uma verdadeira homenagem ao amigo exilado. E, ao voltar da Europa, eis de novo os dois juntos, em viagens das quais ambos usufruíam com igual prazer.

— O Doutor quer dar uma paradinha? Estamos perto do Posto dos 500.

— Não, pode tocar. Não estou com fome.

O Doutor volta aos seus devaneios. Não queria fazer esta viagem, o que queria mesmo era ficar na sua fazendinha em Goiás. A política não mais lhe despertava interesse. Aliás, nunca fora um político, no sentido exato da palavra. Tudo o que realizara como prefeito, governador e presidente, fizera mais por seu espírito de administrador do que de político. Enfim, deu no que deu, agora ele era mais uma vítima da política e da politicagem. Estava viajando para o Rio, atendendo a um apelo político para a formação de uma “frente ampla” de oposição aos golpistas de ‘64.

Lacerda, Magalhães Pinto e outros homens da eterna oposição, não conseguiram manter-se alinhados com a “revolução” e cogitavam de organizar a oposição nestes tempos difíceis para todos.

— Olha, Lacerda, só vou me encontrar com vocês por solidariedade contra isto que aí está. Porém, não quero nenhuma responsabilidade, nem cargos, nem nada. — Dissera em bom tom ao antigo adversário.

Como resposta, ouviu um emocionante apelo. “Lacerda era mesmo um demagogo, convencia até Deus para suas idéias “. Aceitou o pedido. Assim, estava indo para o encontro.

“Que provavelmente resultaria em nada. Os militares estavam há doze anos no poder, não vão abrir mão de nada. Ah! Como as coisas andaram mal para o País. Sua sucessão fora um retrocesso, aquele doido do Jânio querendo varrer o Brasil... para onde? Quase botou fogo em tudo, isso sim. Depois, veio Jango, o golpe e as mazelas da ditadura. Os fracassos, a corrupção, os desaparecimentos de pessoas, tudo escondido pela propaganda do desenvolvimento a qualquer preço. Desenvolvimento, uma ova ! Endividamento, isto sim. A dívida do Brasil, contraída pelos governos militares a partir de 1964, jamais seria paga. Em pouco mais de uma década, a nação foi jogada num buraco sem fundo e sem luz. “

— Geraldo, quando passar pela Fazenda do Guilherme, entre lá, que quero me encontrar com o Dr. Fontes. Ele deve estar lá.

— Pode deixar , doutor. Faltam ainda uns cem quilômetros.

Pouco conversavam os dois, muito se entendiam. Geraldo respeitava o silêncio do Doutor, que andava meio calado ultimamente.’’Também, pudera ! Em vez do reconhecimento, o Doutor foi perseguido. Jogaram nas suas costas a culpa da alta do custo de vida (agora era chamada de “inflação”). Diziam que a construção de Brasília é que endividara o Brasil. Uma ova! “

Atento à estrada, Geraldo continuava nas suas elucubrações e nas recordações.

“ Se fosse por conta dos milicos, eles até abandonariam Brasília. Se o Doutor não tivesse inaugurado a nova capital e instalado o governo federal, por certo hoje tudo estaria abandonado por lá.”

Passava das quatro da tarde quando se aproximaram da Fazenda. Geraldo saiu da Rodovia Dutra, pegou a estrada vicinal, também asfaltada e parou o carro suavemente defronte à magnifica mansão, sede da propriedade rural.

— Pronto, Doutor, chegamos.

Meio zonzo, o Doutor saiu do carro. Tinha cochilado um bom trecho, nem notara o tempo passar. Desceu, sendo abraçado pelo proprietário, seu grande amigo de longa data.

— Oh, meu caro, que supresa! Venha, vamos entrando, tenho muita coisa pra lhe contar. — Enquanto os dois subiam pela escadaria, Geraldo estacionou o carro no pátio , à sombra fresca de uma árvore. Aguardou no carro.

Foi só meia hora de espera. Ao voltar, notou que o Doutor estava carrancudo, o cenho sério, sombrio.

— Toca o bonde, Geraldo.

Novamente na estrada, o Doutor mantinha-se alerta. Fazia observações sobre a rodovia, o movimento.

Escurecia. Geraldo acendeu os faroletes. Também estava mais atento, Notou que algo preocupava o Doutor. Mas não se atrevia a perguntar-lhe. “Se ele quisesse, falaria, ele gostava de falar, pensar em voz alta, como dizia. Mas, agora, com certeza estava sendo roído por alguma preocupação, alguma coisa grave perturbava-lhe o espírito.”

O trânsito aumentava, principalmente de veículos grandes: ônibus, caminhões, carretas. .

— Esses Fenemês são muito pesados pra rodovia. E a maioria de seus motoristas dirigem cansados, afobados. São perigosos. – Comentário do Doutor.

Geraldo diminuiu a marcha, ia pela esquerda, a faixa de alta velocidade. Na mão contrária, os veículos passavam com luz alta todo o tempo, o que atrapalhava Geraldo.

Um ônibus veio pela direita de Geraldo, ia ultrapassar o Opala. Geraldo observou num átimo que a ultrapassagem era perigosa. “Motorista maluco. Puxa vida! Ele tá me empurrando!”

— Cuidado, Doutor, o ônibus tá me fechando!

Tarde demais para o aviso. Geraldo ainda viu, com o canto do olho, a lateral do ônibus encostando-se no lado do seu Opala, as ferragens sendo amassadas como papel. A porta ao lado do Doutor foi arrancada. Geraldo deu um tranco na direção, puxou o carro para a esquerda, o carro voou direto sobre o canteiro central da rodovia. Descontrolado, bateu violentamente contra uma carreta que vinha na direção contrária.

O Opala desintegrou-se. Ao barulho de metal sendo rasgado, juntou-se a fumaça do radiador que explodiu e de outras peças que voavam . O caminhão contra o qual o carro se chocara, parou devido ao impacto. O ônibus, causador do desastre, prosseguiu. Sequer diminuiu a marcha para saber das conseqüências do desastre que ocasionara.

Geraldo morreu preso nas ferragens do seu carro. O corpo do Doutor foi projetado para fora do carro, a 10 metros de distância. Seu relógio, imobilizado pelo choque, marcou a hora do impacto: seis horas e vinte e cinco minutos. Anoitecer do dia 22 de agosto de 1976.

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ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO -SÃO SEBASTIÃO DO PARAÍSO -22 JULHO 2000 Conto # 037 da Série Milistórias

Publicado em “A Babel da Torre”, vol. 2 da Coleção Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 07/03/2014
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