O SONHO DA PREGUIÇA BRANCA

Estou no pomar da chácara do tio Alpineu(1), chupando laranjas. Alex ( que me aparece como o garotinho loiríssimo de 6 anos) me toma pela mão e arrasta-me para fora do pomar, dizendo:

-- Papai, vem, o senhor me disse que ia me dar aquela coisa branca lá do muro, vem.

-- O quê é? -- Pergunto, acompanhando-o por debaixo das árvores.

Chegamos ao pé de um muro ou parede de pedras, alto, com uns 10 metros de altura. A uma altura de 2 metros abaixo do topo do muro, está uma coisa branca.

Pergunto para o garotinho:

-- Aquilo é bicho ou fruta?

Ele não me responde. Observo a coisa: parece uma raia, muito chata, completamente pregada na parede. Seu corpo é totalmente coberto de pêlos brancos, alvos, que brilham prateados quando a coisa faz algum movimento ou passa uma brisa.

Pego um bambu muito comprido e cutuco a coisa: aparece então no meio da pelagem branco-brilhante uma cabeça. É uma cabeça pequena e despida de pelos, mais parece uma cabeça pelada de tartaruga.

-- É um bicho - Falo para meu filho que a tudo assiste sem dizer nada. Noto que ele está com roupa limpa, bem penteado, usa uma gravatinha borboleta. Sei que ele está pronto para viajar.

Continuo cutucando o animal, que não desagarra do muro, está preso à parede, que é bem lisa, apesar de ser de pedra. Está agarrado como uma enorme preguiça, nada o desaloja.

Acima da cabeça do animal há uma cavidade na rocha, que sei, é a toca ou o ninho do animal. Vejo, apesar da distância e do escuro da toca, algumas crias lá dentro, agitando suas cabecinhas peladas e feias.

-- São cachorrinhos do mato -- Descubro e falo ao meu filho.

Imediatamente, uma cena brutal de caçadores perseguidos ou em luta com uma matilha de cachorros do mato. Esta cena não substitui a visão do estranho animal branco de pêlos prateados — é como se fosse um telão ao lado.

Os caçadores são atormentados e acossados pelos enormes cachorros selvagens, numa confusão, em meio a muita poeira . (2)

Volto a cutucar com o longo bambu o animal encrostado na parede, mas não consigo desalojá-lo. Desisto, tomo a mão de Alexandre e vamos para a casa da chácara.

Está uma azáfama na casa: temos de sair de viagem a qualquer momento; Enny, minha mulher, está dobrando roupas, fechando malas, numa pressa terrível.

-- Anda, senão vamos perder o avião -- Ela me apressa.

A cena muda para o enorme saguão de entrada de cinemas num grande shopping center. Ali me encontro a fim de trocar as entradas para o filme. Tenho de viajar com minha família às dezessete horas, são quatorze horas, o filme é muito longo, não vou poder assistir.

-- Tenho cinco ingressos : três são meus, os outros são de Alexandre e seu amigo Virgílio. Alexandre já é agora adulto; não o vejo, mas sei.

Há enormes filas defronte os guichês de venda de ingressos. Se entro na fila, não vou chegar a tempo ao aeroporto, penso. Encontro um empregado do cinema, uniformizado, ofereço-lhe disfarçadamente os ingressos à venda. Ele me guia até o sanitário, onde começamos a negociar as cinco entradas. O funcionário vê meus ingressos, entrega-me três carteiras de identidade (possivelmente das pessoas que vão comprar os ingressos)(5) e sai: vai buscar o dinheiro. Escondo os documentos de identidade, colocando-os no chão, sob meu pé direito. .

O sanitário onde me encontro é amplo e unissex: vejo homens e mulheres lavando as mãos, entrando e saindo do recinto. Num canto da vasta sala, tem um pequeno salão de barbeiro, com duas cadeiras. Em uma delas, um barbeiro corta o cabelo de um homem grisalho.

Enquanto espero ansioso a volta do funcionário com quem entabulei o negócio dos cinco ingressos, entra uma linda mulher, elegante, bem vestida, cabelos pretíssimos e lábios pintados em forte vermelho.(3) Assusta-se, pensa que entrou no sanitário masculino. Estou perto da porta, aviso-lhe que ali é tanto para homens quanto para mulheres(6), acabou essa coisa de banheiros separados. Ela me ouve atenta , mas, mesmo depois de minha explicação, sai do banheiro público.

Nervoso , não tenho mais tempo para esperar o comprador dos ingressos. Saio, tomo um ônibus para o aeroporto. Estou só, minha família me aguarda no aeroporto para embarcarmos juntos.

Na metade do percurso penso em descer do ônibus e voltar ao cinema, finalizar o negócio, os ingressos ainda estão em minhas mãos, os documentos ficaram no W.C. do shopping center. Conto e reconto os tíquetes, são realmente cinco. Mas o ônibus já está mais próximo do aeroporto do que do cinema, desisto de voltar.

Estou sentado no primeiro banco do coletivo, o assento do lado direito está vago. Na minha frente, uma bela mulher vestida totalmente de branco (saia, blusa e sapatos de solado de borracha: será médica ou enfermeira?) está de pé, suando em bicas. O suor escorre-lhe pela face, respingando nos outros passageiros.

-- Sente-se aqui, neste lugar vago — Convido-a, indicando o assento livre.

Ela assenta-se e incontinente me explica:

-- Sou mesmo assim: quando estou no meio de muita gente, começo a suar, como o senhor está vendo.

Começa a chorar, debruça-se sobre meu ombro direito. Abraço-a, procuro acalmá-la:

-- Fica tranqüila. Não se preocupe... Olha, eu sou Antonio, e você, como se chama?

-- Eu sou Antonia.

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Freud explica ?

(1) Tenho sonhado com freqüência com a velha Chácara do tio Alpineu, onde passei momentos felizes de minha infância, brincando com os primos, principalmente no pomar de mais de uma centena de laranjeiras. Esta chácara não existe mais.

(2) O sonho não é colorido, mas a cena dos cachorros e caçadores é sépia, como nas velhas fotografias. .

(3) Novamente um detalhe colorido no sonho em preto e branco. Os lábios - e apenas os lábios - da mulher são vermelhos. Impressionante também é a brancura prateada do animal, da "preguiça" como me pareceu ser. - Outro branco surpreendente neste sonho de tons cinza é o vestuário da mulher no ônibus.

(4) Não conheço as mulheres nem o funcionário do cinema que me compraria os ingressos.

(5) Três carteiras: a mulher de lábios vermelhos, a de branco e o homem grisalho: os três podem representar um mesmo ser.

(6) A fusão dos elementos (“ é tanto para homens quanto para mulheres) > Animus e Anima, teorizada por Carl Yung.

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ARGOS = ANTONIO ROQUE GOBBO =

Belo Horizonte - 13 de maio de 2000

Conto (Sonho) # 22 da Série Milistórias

Antonio Roque Gobbo
Enviado por Antonio Roque Gobbo em 02/03/2014
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