O baile
Descia com indiferença as escadas, apoiando-me em pensamentos soltos e corrimãos devassados pelo tempo. O tempo. Meu corpo entorpecido pela insônia era carregado em ritmo de marola. Náusea leve. Quase lembrança. E continuava a descer. Distante. O prédio era uma inegável ruína. Com vento nos canos e tédio nas paredes. As janelas eram literalmente vedadas por tábuas enegrecidas e de idades irrecuperáveis. A rala luz da rua se filtrava por uma ou outra abertura, inalcançável na parede estúpida, era então o que fazia vezes claraboia. E não parava de descer. Os lances de escada pareciam ridiculamente repetir-se, e minha cabeça cada vez mais tontear. O calor sufocante parecia uma triste propriedade do apartamento onde estávamos locados, meu amigo e eu. Era uma espécie de pensão para estudantes totalmente entregue ao desmazelo. E nem mesmo estudantes eram aqueles sujeitos com quem dividíamos teto. Pobres-diabos como nós que não tinham grana para pagar estada em um inferninho menos modorrento. Todos os dias cruzávamos com rostos novos, inexpressões vulgares e cínicas. Raros sujeitos trocavam murmúrios tão escassamente inteligíveis quanto impopulares. E não parava de descer, os dados de minha memória pareciam a cada instante mais desorientados.
Quando finalmente estaquei em um patamar que julguei ser o térreo é que constatei sem alegria que estivera descendo escadas durante um intervalo de tempo que, a despeito de parecer impossível desvendar-se, fora suficiente para esgotar-me as forças do corpo e do pensamento. E mesmo as paredes e chãos desenhavam-se como absurdas caricaturas, como se fossem não as paredes e chãos que eu estava habituado a ver, mas antes, uma alegoria terrível destas paredes e destes chãos. Rumei como pude para a saída. Meus pulmões pediam ar livre. Notei, porém, que o próprio ar estava diferente, miseravelmente mais carregado.
As ruas, os prédios ao redor, tudo inspirava uma tristeza cinza. O carnaval movia-se com lentidão em torno de si. As pessoas estavam sujas e indispostas no meio do baile. Mãos jogavam confetes que caiam tristemente no chão que uma chuvinha miúda se encarregava de molhar e que pés anônimos pisavam sem sequer perceber. Entretanto saltava tudo e superava tudo o calor daquele fevereiro. Febre.
Não, o que via não podia ser a mesma cidade. Foi o que, sem qualquer ressentimento, me ocorreu em algum lampejo de consciência. Mas não podia ser assim, não estava inconsciente. Via tudo, mas nada era raciocinável naquela fantasmagoria. Tudo se afigurava fantasioso mistério, contrário às leis de minha tão afetada razão. Os policiais com rostos de cera pareciam sentinelas de uma festa clandestina e funérea. Parados, na iminência de desmancharem suas formas já tão amorfas, olhavam para todos os lados com indolência doentia. Mas, para mim, parecia que não conseguiam ver senão algum buraco negro e sem fundo dentro de seus próprios corpos cor de vela. Uma pancada súbita na cabeça me fez apagar. Tempo.
Com sangue coalhado de muitas horas, ergui-me da lama. Ao meu redor, repentinamente enxerguei um mundo. Meu amigo sacudiu-me e perguntou algo cujo significado não atinei. Seus olhos estavam vidrados e fundos; sua pela irreversivelmente danificada pelo intemperismo. Com alguma sombra de dor, balancei a cabeça negativamente depois de supor que ele indagava o que eu fazia no meio daquilo. Observava os convivas com lentidão e extremo aborrecimento: pessoas sinistras de sinistras risadas, girando e dançando qual autômatos. Quando voltei a buscar meu amigo com os olhos, ele havia desaparecido. Pareceu-me que nem todo esforço do mundo me permitiria reconhecer a razão dessa comédia macabra. Tudo o que via enervava profundamente meu entendimento.
Então, imóvel no meio daquela festa, pude dar por mim. Os presentes vestiam-se uniformizados por uma pele feita de sebo. Meu amigo, nesse meio tempo, devia mesmo ter-se misturado na multidão agora tão obviamente homogênea. Exceto por mim, que estava inteiramente nu.
Cobrindo meu corpo de exatos trinta anos, apenas minha barba suja, minha cabeleira desgrenhada e fedida, os cabelos do peito, das costas, do cu e do pau. Com horror, reconheci-me ruidosamente humano, afogando-se na fatalidade do baile que se retorcia no centro do universo.