Cigarros

Todas as tardes, as cinco e meia, tinha o costume de passar no comércio do seu João, em frente ao terminal de ônibus, para comprar cigarros. Cansei de ouvir os outros dizerem: "Esse vício ainda vai matar você". Acontece que minha vida sem o cigarro não seria uma vida. Vejam bem, fumo desde os dez anos de idade e agora tenho quarenta e um, não é fácil largar um hábito de tão longa data. Respondo sempre a mesma coisa para eles: "Vou parar sim, pode deixar". Logo após, passo na lojinha do seu João e compro alguns maços para relaxar em casa.

Pois bem, numas dessas minhas indas e vindas deparei-me com uma situação inusitada. Lá estava eu, as cinco e meia, pronto para comprar meu maço de cigarro quando ergo o olhar das moedas em minha mão e vejo, pela primeira vez na vida, a porta da loja do seu João fechada,. Doença não seria desculpa, pois sempre que o seu João estava doente alguém da família tomava conta do pequeno comércio, geralmente seu irmão. Foi quando percebi pelo canto do olho uma banca feita de papelão, daquelas que certas pessoas usam para o jogo de encontrar a dama entre as três cartas, montada perto da grade da estação de ônibus. Mas, em vez de jogos de cartas, haviam maços de cigarro espalhados pela mesa improvisada. Atrás dela, um homem franzino de cabelos grisalhos, pele moreno-escura e óculos fundo de garrafa estava sentado em um banquinho de madeira.

Logo que o vi, dirigi-me a ele com a intenção de comprar meu precioso cigarro. Não tinha maço nenhum em casa, e isso era inaceitável. Pois bem, logo que cheguei perto o pequeno homem disse.

- Quer um desses maços não é? - Disse isso olhando-me nos olhos por baixo daqueles óculos grossos.

- Obviamente que sim, por acaso tem algo mais pra vender?

- Bom, posso te vender algo muito melhor, algo que você não pode compra em nenhum outro lugar - Seu tom de voz era estranhamente firme para alguém de sua aparência.

- Um relógio então talvez? - Perguntei sarcasticamente. Logo que disse isso o franzino soltou uma risada baixa. Era rotineiro alguém me abordar pra vender "o melhor relógio do mundo".

- Não, você me entendeu mal - Estranhamente ele ainda me olhava fixamente nos olhos, aquilo estava ficando desconfortável.

- Olha meu filho, já que você não quer me vender um maço de cigarro vou comprar em outro lugar - Estava me virando para sair quando novamente o franzino disse em tom firme.

- Como vai Helena?

Essa pergunta me gelou até os ossos, como aquele velho que eu nunca havia visto sabia o nome da minha filha? Naquela hora o sangue subiu a minha cabeça e agarrei o pequeno homem pela gola.

- Como você sabe o nome da minha filha?! Você anda me espiando?!

- Acalme-se Carlos - Dito isto o franzino agarrou minhas duas mão com uma força surpreendente, me afastando dele com facilidade.

Me desvencilhei do seu aperto e então percebi algo estranho: ninguém havia aparecido para apartar nossa briga. Foi então que dei uma olhada em volta e minhas pernas ficaram bambas; estávamos cercados por uma densa neblina cinzenta, não era possível enxergar nada além dela. A banca com os cigarros havia sumido e o franzino homem agora era mais alto que eu, sua face coberta por uma mascara de metal e trajava uma larga túnica preta.

- Há muito venho observando você Carlos. Há tempos sua vida vêm-se desfazendo em frangalhos, e o símbolo mor de sua decadência é justamente o que você usa para esquecer sua angústia - Dito isto, a estranha figura esticou a mão direita em minha direção, e um maço do meu cigarro preferido materializou-se - Sua filha merece mais do que isso, não?

As lágrimas brotaram involuntárias em minha face, meu corpo todo tremia, então caí de joelhos soluçando alto.

- Desde sempre a vida vem me tirando tudo: meus pais, meus sonhos, e quando conseguiram pais adotivos para mim, esse também me foram tirados. Foi quando comecei a perambular pelas ruas e o tabaco tornou-se meu melhor amigo - Minha voz vacilava devido aos soluços e o turbilhão de pensamentos que rodopiava pela minha cabeça - Todas minhas mágoas eram apagadas pela maravilhosa sensação do trago da fumaça. Consegui mudar de vida, arrumei um emprego, me casei e até tive uma filha. Mas o maldito vício não me abandonava. Foi quando minha esposa morreu e Helena tinha só três anos, por sorte tinha ajuda de uma vizinha para cuidar dela. Talvez não fosse minha pequena Helena eu já havia cometido suicídio.

Enxuguei as lágrimas do rosto e olhei para as orbitas escuras da figura com a máscara de ferro.

- Se está aqui para levar minha alma, pois bem, faça. Mas peço uma coisa: cuide de minha Helena, ela é tudo que me restou nesse mundo!

Quando terminei meu discurso acalorado a figura colocou ambas as mãos em meu peito e fui erguido no ar. Uma luz branca forte brilhava onde a figura colocara as mãos em meu peito e uma força implacável parecia sugar minha vitalidade. "Ele está pegando minha alma! Helena, me perdoe por ser um pai tão horrível!".

Já me preparava para deixar esse mundo quando abri os olhos e me vi de frente para o comércio do seu João, que estranhamente estava aberto. Foi então que a sucessão daqueles acontecimentos incríveis vieram a minha mente, e me senti mais leve do que nunca, como se anos de sofrimento tivessem sido tirados de meus ombros. Virei as costas para a lojinha e corri para casa, onde chorando abracei Helena marcando o que seria o começo da minha nova vida.

Gabriel Freitas
Enviado por Gabriel Freitas em 27/02/2014
Reeditado em 10/03/2014
Código do texto: T4709264
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