O drama de Morpheus

Não acreditei quando me disseram. “Não é possível, não pode ser, tenho que ver para crer!” Como se fosse salvar uma alma dos piores dos enfermos, me locomovi rapidamente em sua direção. Meu coração desejava não sentir o que minha mente tinha certeza com o que os meus olhos iriam se deparar.

O cenário foi aos poucos se montando na minha frente, junto com canções, conversas, zumbidos, ambos formavam uma melodia que ao invés de dar-me harmonia, davam-me uma esquisita agonia. E lá estava ela, dançando em meio à multidão. Era uma noite sombria, fria, em minha volta várias pessoas que nunca vira antes. No escuro, ela brilhava tão quão uma estrela solitária na vasta e eterna escuridão do infinito, cintilava como jamais havia cintilado, parecia ser outra pessoa. Logo, tomou conta do meu corpo uma mistura louca de sensações: tristeza mesclava-se com a fúria; vontade de chorar e vontade de gritar; vontade de bater e vontade de abraçar. O amor e o ódio de mãos dadas como irmãos.

Irreconhecível ao órgão propulsor de todos os órgãos, e não aos meus olhos, ela segurava uma taça de vidro afogada em chope em uma de suas mãos, bebia aquele líquido como se fosse refrescar sua própria alma. Usava um mine short jeans branco, uma blusa preta com o desenho de um crânio combinando com o salto alto preto de plataforma ultrafina, em seus lábios um batom leve que contrastava com sua suave pele, em seus olhos uma sombra preta bem a vontade que destacava o castanho de suas retinas, a linda franja em sua testa dava o toque final à imagem de sedutora-avassaladora. “Linda, sombriamente linda!” Conversava despreocupada com suas amigas e ria, gargalhava... Era como se cada uma das gargalhadas soassem iguais a navalhas e rasgassem meu pobre coração.

Nem todos os tambores do mundo juntos superariam o barulho do tambor que batia em meu peito, quando chegada à hora da aproximação. Fui cauteloso, pelas suas costas segurei em seu ombro e chamei seu nome. A me ver, ao se virar, seus olhos tremeram, sua face ficou ainda mais pálida, a taça deslizou de sua mão e veio ao chão.

Aquele momento ficou lento, cinza e vi a taça cair e quebrar vagarosamente, ecoando o cintilante som de alguns de seus cacos. “O que você está fazendo aqui? Responda-me! Você anda me evitando há tempos, agora isso...” Disse a ela com firme voz, segurando em sua mão. Ela simplesmente olhou-me como se estivesse sentindo apenas dó de minha tristeza, soltou-se de minha mão e disse-me: “Desculpa, mas chega de papo por hoje, outro dia nós conversamos.”

Neste exato momento um vento frio soprou suavemente meu corpo que congelou instantaneamente. O que foi que aconteceu para o nosso quente amor se tornar um enorme iceberg? Éramos tão íntimos, pensávamos até em casamento! “Só me procure se me amar de verdade, se não, me esqueça, assim como tentarei esquecer você.” Disse-lhe enquanto a via sumir em meio aquele emaranhado de gente.

...

Não me lembrava de como tinha acontecido, mas estava eu a beira do desespero, só, atormentado, até o espírito de meu corpo pediu distância, me transformando em mera casca vazia. Encontrava-me em um estado tão eloquente que não conseguia mais medir dimensões entre tempo e espaço, até a visão fugia de mim, pois não conseguia enxergar o rosto de mais ninguém. Neste instante eis que surge um amigo. Eu não me lembrava bem dele, não conseguia reconhecer seu rosto, que mal dava para avistar. Sua voz era diferente de qualquer outra voz que me recordava, mesmo assim, algo me dizia que ele era meu amigo e de muito tempo, o mesmo tinha igual consideração por mim. Seu alto e atlético corpo estava coberto em uma camisa baby-look branca em decote V, uma calça jeans preta bem apertada e um tênis branco com listras pretas. Quando fitei seus olhos verdes que fugiam aos meus, percebi que tinha algo de errado com ele, queria me dizer algo, mas não sabia como. “Se tens algo a me falar diga-me agora!”

Ao proferir aquelas palavras notei que o lugar onde se encontrávamos era um bar. Um bar que eu não sabia qual, mas tinha várias garrafas sobre a mesa, o meu copo estava cheio do néctar de Loki, as cadeiras e mesas eram amarelas e se espalhavam pela rua com duas longas tendas brancas a cobri-las. Meu amigo tomou um copo pela mão e o levou em direção a sua boca, meu olhar fixou-se naquela direção, que depois de seu drinque saíram dele lentamente, uma por uma, infames palavras:

“Eu Estava me divertindo em uma festa wave de halloween quando algumas garotas tiraram as blusas e começaram a dançar se insinuando para nós, que estávamos perto, uma delas veio ao meu encontro, dançando e rebolando, subia e descia ao chão como frenética, seguindo o louco ritmo das batidas que o DJ orquestrava. Entrei no embalo e na agitação, puxei-a para junto ao máximo de mim. Foi louco cara! Foi como se todas as pessoas dali desaparecessem, eu sentia seu corpo frágil e perfeito junto ao meu como se fossemos um só corpo, a química tinha rolado, o próximo passo era tirá-la de lá o mais rápido possível e nos envolvermos em um ardo amor bandido de uma noite. Mas quando virei seu corpo para ficar de frente ao meu, cara a cara, a reconheci. Ela estava muito diferente em tudo, mas o rosto... Ah, o rosto ainda era o mesmo. Desculpa meu amigo ter que te dizer isso, mas... era a sua amada que estava em meus braços.”

Ele silenciou e eu permanecia imóvel, feito uma árvore, meus olhos arregalados nem sequer piscavam, balbuciei algumas palavras, mas disso não passaram, meu coração doía, a sensação era que este jovem rapaz que se dizia meu amigo apertasse e esmagasse meu órgão vital com suas próprias mãos. Então, ele continuou a falar: “É isso mesmo meu bom amigo! E depois que ela me reconheceu também, pensei que iria demonstrar-se arrependida, mas não, começou a rir como se aquilo não fosse nada. Eu por minha vez me afastei rapidamente dela e a perguntei o que estava acontecendo com ela, por que ela agia daquela forma, mas simplesmente ela se virou e se atirou ao primeiro cara que encontrou pela frente.”

Não consegui digerir mais nenhuma palavra, neste momento fui dominado por uma ira incontrolável e eu precisava colocá-la para fora. Como um trépido insano levantei-me da mesa empurrando-a com toda a minha força: mesa, cadeiras, copos e garrafas foram ao chão. Segurei-o pelas bordas do decote de sua camisa, a vontade que me passava era de socar sua face, mas como não era de minha índole, apenas palavras saíram de minha boca. “Por que me envenenas com estas palavras? Já não basta meu sofrimento? Diga-me agora, o que pretendes obter de mim proferindo tal tormento?” Soltei-o e fui ao chão como os primeiros movimentos de um bebê, aos prantos derramando cachoeiras de desgosto. “Levante-se amigo, longe de mim querer o seu mal, vim somente avisar-te do perigo que corre sua amada. Aquela área está repleta de homens maus, onde o respeito ao próximo passa por bem longe, eles fazem de tudo só para saciar seus prazeres e sua amada é um alvo fácil para eles. Além do mais, ela está fora de si e você tem que ajudá-la a retomar o espírito, ou pelo menos tentar.” Ergui-me como se estive escalando o Monte Everest, aos poucos, dolorosamente. Levantei a cabeça... Sim, ainda há vida em mim! ...e perguntei pela ultima vez: “Onde se localiza essa tal wave?” “No campo que fica atrás do cemitério.”

Quando me dei conta já estava abrindo os portões do inferno. A nevoa branca se espalhava pelas tumbas e lápides, entre uma cova e outra, fantasmas, bruxas, vampiros e tantos outros seres se atracavam em fúrias de amor festivo. Outros se afogavam no mel de Baco. Locomovia-me tão rapidamente, que era como se passasse por dentro deles, meu foco era só um: minha amada em meus braços custe o que custar!

Quase sem fôlego, mais com muita energia cheguei ao ápice da festa, onde se concentrava a maioria das pessoas, tornei-me um carrossel, virando a cabeça pra todo lado, na esperança de encontrá-la. Neste exato momento, um reboliço na multidão chamou-me a atenção, era uma jovem em cima de uma tumba decorativa, ela estava quase despida de suas vestes. O mundo escureceu naquele exato momento. Era ela, eu tinha certeza! Vestia um short preto e mais nada, chorava, a maquiagem borrava seu rosto, ela tinha cortado seu cabelo, não era mais aquela que um dia chamei de meu amor, era uma desconhecida ao meu coração. Mas precisava de ajuda, precisava de mim, sete homens o cercaram naquela tumba e queriam tirar suas roupas a força. Todos os conheciam, eles eram assim, nenhuma mulher podia provocá-los, pois eles não tinham limites.

Foi como se as pessoas tivessem se evaporando daquele lugar, não consegui enxergar mais ninguém, a não ser ela e aqueles sete ogros. Fui até a eles gritando como um guerreiro em campo de batalha e retribui golpes como um louco para todas as direções... “Oh vento perdoe-me, não queria te atingir, não és tu o meu rival!” Logo, podia-se ouvir alguns gritos pela multidão, fui cercado, um circulo dos piores seres da cidade estava formado ao meu redor. O menor e menos forte da gangue tomou a iniciativa: “Deixa comigo Bill, deixa comigo... Eu vou dar um jeito neste palhaço.” Antes que ele se aproximasse corri em sua direção, metralhando golpes, mostrando que não estava para palhaçada. O segundo veio logo em seguida, mas escorregou em um litro de vodka que estava no chão e caiu, neste instante eis que vêm os outros. Mãos e pernas de todas as direções golpearam-me até me levar a lona.

Ainda que tirassem toda a carne de meu corpo e secassem todo o meu sangue, não conseguiriam remover uma coisa de mim, essa coisa é implantada no homem e se espalha semelhante a mais forte das raízes, tornando-se pior que um tumor maligno, essa coisa é a ideia fixa. A minha ideia fixa era de ter em meus braços naquela mesma noite a mulher a quem eu movia o mundo por ela, “custe o que custar”.

Ao chão derrotado, fixava bem os meus olhos em cada um daqueles elementos, em especial ao líder do bando, Bill, que tinha o porte físico de um lutador peso pesado do MMA, não usava camisa naquela ocasião, mostrando seu negro corpo cheio de cicatrizes, sua calça jeans tinha rasgões nos joelhos, o mais aterrorizante era a pintura de caveira que cobria todo o seu rosto. Bill tomou pela mão a caída garrafa de vodka e veio em minha direção como se tivesse preparado para abater um gado. “hum, hum, hum... Que agitada noite tivemos hoje meus amigos! Pelo menos mostrou que tem peito, ao desafiar a nossa turma. Nenhum Zé cú ousou afrontar a mim ou a alguns de vocês, mas esse Zé ninguém enfrentou sete homem por uma vadia. Que desperdício de vida em cara!?” Enquanto dois de seus comparsas segurava minhas mãos o monstro quebrava o fundo da garrafa transformando-a em um instrumento mortal.

Como se por um estralar, todos os meus sentidos voltaram a funcionar e pude ver ao longe alguém agoniando-se pela minha situação. Era ela que gritava, clamava por piedade, naquele momento se arrependera de todos os seus infames atos. Quando o terrível Bill estava preste a deferir o golpe que induzia a velha moura a cortar o meu fio da vida, ele foi interrompido por um dos seus. “Espera um pouco Bill, acho que conheço esse sujeito! Ele é o...” Para minha grande sorte neste exato momento eis que surge a cavalaria. Era aquele meu amigo de horas atrais, junto com uma dezena de homens, que creio eu eram do meu círculo de amizade. Uma árdua batalha iniciou-se diante de mim, gritarias e correrias para todas as direções. Aquela gente que antes dançava freneticamente, agora pareciam formigas assanhadas encima do formigueiro.

Ainda ao chão assistia socos, chutes, o voar de sangues, a raiva de uns, o punho feroz de outros e a coragem dos meus ao enfrentar o bando mais temível da cidade. Como um astuto guerreiro de batalha, Bill destruía seu oponentes um a um. Segurava o pescoço metia uma sequência de golpes esmagadores no rosto de seus oponentes, chutes massacradores, mas ele não era uma máquina de batalha, cansou e recuou um pouco para tomar folego. Ali sentado, quase de joelhos pude notar bem ao meu alcance uma taça de vidro com a ponta quebrada, o mais estranho era que a taça tinha a mesma semelhança da taça que vi minha amada segurar. Não hesitei um só instante, tomei pela mão a então arma e fui em direção do ogro Bill, que se encontrava ali mostrando-me as costas, sem se dar conta da minha presença. O ódio possuía-me, “agora eu o matarei, oh maldito infeliz”. Levantei a mão e imprimi forças tal qual uma punhalada, seria ali em sua nuca, vai ser agora morra...

...

- Dr. Gomez! Dr. Gomez!

- Oi, o que foi Clarisse?

- Desculpe-me em ter que acordar o senhor, mas o cliente marcado para agora acaba de chegar.

- Ah, está bem, mande-o entrar. Clarisse, espere um pouco. Que curativo é esse em sua mão?

- Derrubei umas das taças da sala de espera enquanto às limpava, mas acabei me cortando quando fui apanhar os cacos. Não escutou nenhum barulho Dr.?

Daniel Vitor de Almeida
Enviado por Daniel Vitor de Almeida em 10/02/2014
Reeditado em 22/08/2017
Código do texto: T4686089
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