O grande encontro: Jesus e Nietzsche (o Cristo e o Anticristo)

O grande encontro: Jesus e Nietzsche (o Cristo e o Anticristo)

Se, no jogo do acaso, a vida colocasse, frente a frente, em um mesmo espaço subjetivo, para que pudessem tentar convencer um ao outro e, dessa maneira, encontrar uma dúvida e um desequilíbrio, no qual crer e descrer passariam a ser apenas sobras dialéticas.

Se, nesse encontro desencontrado de ideias, fomentado pela força do discurso e tentando estabelecer, não uma verdade, mas uma dúvida, Nietzsche e Jesus resolvessem, depois de muita liça, sentar para dar chance ao inconcluso.

Dessa maneira, o Anticristo e o Cristo, pela primeira vez, puderam debater e expor suas verdades e apontar, um ao outro, as vitorias e derrotas que provocaram com seus discursos.

Ambos chegaram ao local na hora certa, cumprimentaram-se e sentaram em frente, um ao outro. Um silêncio sepulcral milenar, olhares de desconfiança e.... Jesus, com sua simplicidade, tomou a iniciativa e rompeu o silêncio.

- Nietzsche, que bom encontrá-lo!

Prontamente, Nietzsche respondeu:

- Decerto, esse encontro é algo que sempre almejei.

- Mas por que me persegues?

- Olhe, não sou Saulo! Não fiquei cego de fé e nem preciso de uma tempestade de areia para que me convença a crer em você.

- Nietzsche, por que foge do óbvio?

- Porque você estabeleceu uma única verdade e enfraqueceu a existência.

- Mas o que é a verdade? Pilatos perguntou-me, lembra? Não respondi. E quanta verdade você é capaz de suportar?

- A verdade é o seu pecado!

- Eu sou o caminho, a vida e a salvação!

- Jesus, perceba que sua estrada leva apenas a uma direção e a vida tem um mundo vasto para ser explorado.

- Eu ensinei com o exemplo e pedi que vos amai como eu os amei.

- O amor enfraquece o homem!

- Entendo, Nietzsche. Você falará que o homem precisa se libertar das paixões para que se supere. È o seu além-do-homem?

- Eu sou o super-homem! Libertei-me e, dessa maneira, reavaliei valores, desprezei os que me diminuíam e criei outros tantos que estivessem comprometidos com a vida.

- A vida deve ser uma bem-aventurança!

- Esse sermão eu conheço de cor. Ele foi caro demais.

- Não, Não conhece! A palavra não tem honra sem ação.

- Mas essa moral do escravo, jamais quero!

- Mas sem perceber, você é um bem-aventurado, assim como eu.

- Comprove!

- Você foi perseguido, chorou às escuras, foi injuriado, morreu sozinho...

- Mas não quero a vida eterna como recompensa. Esse discurso menoscabou a vida e fez da existência uma expiação para os covardes.

- Não, Nietzsche, apenas, apresentei-lhes o reino do céu.

- Você criou um manual de vida e retirou, dessa maneira, a liberdade de escolha.

- Você precisa entender que falo por parábolas.

- Você deu margem a várias interpretações.

Nesse momento, Cristo levantou-se e mostrou-lhe uma nuvem.

-Vê aquela nuvem, ela não caminha sem direção. Todo o universo tem uma ordem e tudo vem de Deus.

Nietzsche também se levanta e olha para o horizonte.

- Cada passo determinado por você é um tropeço nas leis da existência. Oferece o livre-arbítrio e, em seguida, dá a cadeia do pecado.

- Mas eu também ofereci o perdão.

- Mas por que pedir-te perdão por algo que a punção libido de vida ordena?

- Para que se arrependa, assim como a prostituta.

- Quantas pedras você atirou sem saber?

Cristo sentou-se e Nietzsche o acompanhou. Jesus então falou:

- Por que obedece a Lei de Talião?

- Responda-me! Caso eu lhe bata, agora, na face, você me daria a outra face?

- Qual é a outra face do amor? Qual a outra face da covardia? De que face eu falei mesmo?

- Mas aqueles que te seguem, eles são como vermes, quando pisoteados se encolhem para não serem pisados novamente. Eis a moral da humildade.

- Eu ensinei a amar os inimigos; a buscar o tesouro no céu; a não julgar para não ser julgado.

- Mas o seu Deus julga, a todo tempo, o que é certo e errado. È um juiz perfeito!

- Nietzsche, siga-me e eu o farei pescador de homens!

- Jesus, negue e concluirá sua missão!

Nietzsche convida Jesus para uma caminhada, mas logo senta e o indaga:

- Não percebe que o único cristão morreu na cruz?

- Percebo que minha igreja é uma pedra e aquele que tem fé move montanhas.

- A montanha – tal metáfora – cegou a visão de quem quis olhar além dela.

- Não, Nietzsche! O homem andava nas trevas e eu acendi a luz do mundo.

- Eu procuro o homem com a lanterna de Diógenes, o Cínico.

- Eis o Homem aqui!

- Jesus, lavei, durante muito tempo, as mãos sujas de pão e vinho.

- Eu limpei o pecado do mundo com meu sacrifício.

- O resultado dessa limpeza foram perseguições, assassinatos, fogueiras, atrasos...

- O escândalo deve existir, mas ai daquele por quem vem o grito.

- Jesus, o seu cristianismo é a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece.

- Aceitar a vontade de Deus é entender os seus preceitos.

- Deus morreu!

- Deus é eterno!

- O seu Deus é sangrado amiúde quando desautorizam sua palavra.

- Podem o céu e a terra passarem, mas de modo algum passará da lei um só I ou um til, até que tudo se cumpra.

A conversa continua e Nietzsche resolveu lhe indagar.

- Qual discípulo lhe traiu?

- Você sabe que foi Judas!

- Mas se tudo estava determinado, tudo estava escrito e você, o filho do Homem, deveria morrer para redimir os pecados, quem lhe traiu? Certamente, foi quem lhe enviou! Judas e você foram traídos.

- Eu vim para cumprir as escrituras e cumpri.

- Se não fosse Paulo, sua missão fracassaria. Aliás, fracassou. Você disseminou a apalavra e a palavra multiplicou em discursos unilaterais.

- Paulo foi mais um em que o espirito de Deus se revelou.

- Mas parece que Pedro não teve essa revelação, pois te negou três vezes e fugiu do evangelho logo após a sua morte.

- Pedro é uma rocha!

- Chorou amargamente antes do galo cantar. È frágil como a verdade. Mas, eu te neguei mais de três milhões de vezes. Pedro e eu, somos parecidos!

- Em verdade, verdade vos digo; em todo homem há a semente do criador.

- Em “verdades”, afirmo: a semente, muitas vezes, cai entre pedras e não consegue germinar. Você foi o filho pródigo, Cristo, entrou pela porta estreita, jejuou sem alarde, entretanto, não teve honra diante dos seus.

- Eles não sabiam o que faziam. Eu os perdoei!

- Se eles não sabiam o que faziam, não precisavam de perdão.

Cristo, então, falou sobre a crucificação e o momento de agonia.

- Eu suei sangue e meu Pai mandou-me um consolador.

- Ali, no Getsêmani, você negou seu Deus. Ficamos irmanados naquele momento.

- Não!

- Sim! Você pediu para afastar o “cálice”.

- Mas eu fiz a vontade do meu Pai!

- A contragosto!

- Nietzsche, eu vim como homem e como tal, sentiria as dores na carne.

- A carne é forte, o espirito que é fraco.

- Fui levado como um malfeitor e não cometi crime algum. Meu crime foi acender a luz do mundo e curar o pecado do homem. Recebi chicotadas e uma coroa de chacota, mas, meu reino não era daqui. Lavaram as mãos, chamaram-me de blasfemador ... tudo para imputar-me uma culpa. Não reagi, não bradei; aceitei o flagelo com dignidade. Mas, confesso: até hoje, sinto as dores do mundo em mim.

- Entregue como ovelha aos lobos.

- O sangue do justo derramado.

- Mas tal atitude levou-os a deturpar o bom, ruim e mau. O bom é o fraco, o oprimido, o sofredor e o mau passou a ser o forte, determinado e vencedor. Sabe-se que o lobo não é mau, é de sua natureza; mas a ovelha, covarde, o vê como mau e não como ruim. Porém, se o lobo aceitar tal conceito, deixará de ser lobo e passará a ser rebanho. (Moral dos escravos, Jesus).

- Eu vi todos me abandonarem e recebi os cravos com os olhos enxutos.

- Eu fui o “Martelo” em vida!

- Colocaram sobre mim uma placa, INRJ.

- Crucificaram- lhe entre malfeitores. A cruz era para malfeitores.

- Eu, até mesmo na dor, perdoei o ladrão.

- Mas blasfemou contra Deus.

- Não! Apenas disse aba sabactani.

Nessa hora, Nietzsche fez a sua grande pergunta:

- Jesus, e se um demônio lhe dissesse que esta vida da forma como viveu no passado, você teria de vivê-la de novo, porém, inúmeras vezes mais, e não haveria nada novo nela. Cada dor, cada alegria, cada coisa minúscula ou grandiosa retornaria para você mesmo. A mesma sucessão, a mesma sequência várias e várias vezes, como uma ampulheta do tempo. Imagine o infinito! Considere a possibilidade de que cada ato que você escolhesse, Jesus, você escolheria para sempre! Então, toda vida não vivida permaneceria dentro de você! Não vivida... por toda a eternidade! Gosta desta ideia...? Ou detesta...? Escolha!

- Afasta-te, satanás!

- Cumprir as escrituras eternamente, sentir toda dor e angústia da crucificação... Certamente, sei que não aceitaria tal proposta.

- Eu morri e tirei o pecado do mundo!

- Não, você inventou a moral e o pecado!

- Meu nome se espalhou e todos conheceram, enfim, a glória de Deus.

- O que é Deus?

- Estive contigo todo o tempo e não me reconhece?

- Não tenho os olhos abertos por seus milagres.

- Bem-aventurado os que não viram, mas creem!

- Tomé precisou ver e, ainda assim, não creu.

Jesus resolveu andar e pediu para que Nietzsche o acompanhasse. Cristo então falou:

- Eu ressuscitei e fiquei entre os homens, durante quarenta dias.

- Não! Você está entre eles até hoje!

- A minha palavra ressoa como espada.

- Que pena que propagou a verdade absoluta!

- Depois de mim, o mundo jamais foi o mesmo!

- Depois de mim, o mundo foi o mesmo!

- Você fez a sua parte!

- Você cumpriu a sua missão!

- Fato consumado!

- Discurso de vencido!

- Você é bom, Nietzsche!

- Você é ruim, Cristo!

- Somos todos filhos de Deus!

- Você multiplicou pães, peixes e, consequentemente, homens que acreditam em você!

- Apascenta as minhas ovelhas.

- O lobo as come!

- Tenho sede!

- Tome vinagre!

... e os dois continuaram a andar, até que se perderam no horizonte. Nesse momento, o céu e a terra tremeram em busca de uma resposta.

Quem convenceu quem?

Mário Paternostro