Muito Longe do Fim Décima Quinta Parte
- Depois é que sou o Chorão! - brincou Alexandre para descontrair, quando meus olhos se encheram de lágrimas ao ver meu baixo. Aquele seria nosso primeiro ensaio, num estúdio improvisado na casa de Marcão. Era igualzinho ao instrumento que eu tocava na Terra em seus mínimos detalhes... ou seria o mesmo? O fato é que a emoção foi demais e eu tive de sair correndo para que os outros não vise as lágrimas que banhavam minhas faces.
Eram uma mistura de tantas coisas! Alegria, tristeza, nostalgia, mágoa do passado... lembrei do momento terrível em que apontei o revólver para a minha própria cabeça, cometendo um terrível pecado... corri para o jardim, sentei debaixo de uma árvore e comecei a soluçar.
Alexandre me seguiu e me tomou em seus braços. Chorei agarrado a ele por muito tempo. Dele emava uma ternura tão grande, dirigida a mim, que me reconfortava, como a asa protetora de um pássaro.
Depois que me acalmei, ele secou minhas lágrimas com suas mãos e me deu um beiio na fronte.
- Está melhor? - perguntou.
Estou. - respondi. - Mas tenho medo de não saber tocar mais aquele baixo. Será que eu ainda lembro?
- Claro que lembra, Passarinho- - ele respondeu me afagando. - Tocar e cantar é como andar de bicicleta, a gente não esquece nunca... eu lembro de todas as letras das músicas... vamos lá? O pessoal está nos esperando...
Suas palavras e seu carinho me fortaleceram, e voltamos para dentro. Os outros conversavam e riam alegremente, afinando seus instrumentos. Decidido, empunhei meu baixo. Assim que fiz isso, tive certeza de que ainda era capaz de tocar. Alexandre, de boné e camiseta, incorporara o antigo Chorão, e pegou o microfone.
- O que você vai cantar?- perguntei.
- Faz a introduão do Proibida pra Mim, - ele pediu.
Assim que os meus dedos deslizaram pelas cordas, as primeiras notas fluíram, como se estivessem ali esperando por mim. Alexandre, ou melhor, Chorão, começou a cantar. " Ela achou o meu cabelo engraçado, proibida pra mim, no way... se não é eu, quem vai fazer você feliz? guerra!"
Todos tocavam em perfeita sintonia, era uma coisa mágica. Então compreendi que nada se perde no universo. Ali estava o mesmo Charlie Brown Jr de antes, agora com mais um integrante, Peu, recomeçando do ponto onde parou... Alexandre cantou várias outras canções, como Te Levar Daqui, Céu Azul, Confisco, Pontes Indestrutíveis, Tamo Aí na Atividade... eu o acompanhei o tempo todo, eu tocava como antes, ou talvez melhor que antes...
Os ensaios passaram a fazer parte de nossa rotina diária. Todo dia, ao entardecer, a gente se reunia na casa de Marcão. Nossos dias untos eram muito gostosos e tranquilos. Cada vez eu gostava mais daquele lugar e da nossa casinha de sonho. Semeei amores-perfeitos ao redor de nossa casa e eles logo nasceram, graúdos e lindos, de todas as cores imagináveis. Eles tinham um significado muito especial para mim.
Engraçado que naquele lugar encantado as flores não murchavam. As flores do vaso na sala eram as mesmas do dia em que chegamos, sempre frescas e lindas. O amor-perfeito que Alexandre me dera continuava vivo e colorido dentro do livro. Acho que as flores ali também eram imortais.
O clima era maravilhoso, temoeratura ideal, sempre amena, com aquele céu de um azul radioso. Ali não chovia, as plantas captavam a umidade de que necessitavam do orvalho noturno. As noites eran tão lindas, perfumadas e calmas, que não dava vontade de dormir... dava vontade de ficar acordado admirando aquele céu aveludado, de um profundo tom violeta, cravejado de estrelas...
Numa dessas noites, Alexandre e eu chegávamos em casa quando vimos uma jovem mulher sentada no banco de nosso jardim, nos esperando. Usava um vestido lilás, era morena e tinha olhos tristonhos.Eu logo a reconheci. Florbela Espanca.
CONTINUA