A gota d’água

                                               Há em tudo um limite que é perigoso transpor, porque, uma vez transposto, já não há processo de voltar-se atrás. (Dostoiévski)

 

O copo estava completamente cheio.

Quem o olhasse bem de perto veria até mesmo uma fina camada acima da borda, abóbada contida somente pela gravidade e persistência das moléculas. Antes, o recipiente estava na bancada ao lado do fogão e também exposto aos raios do sol que invadiam a janela à tarde. Esse calor manteve uma morosa evaporação que impediu que o terrível evento ocorresse.

Depois fora colocado em cima da geladeira e lá ficou estático esperando que alguém interferisse na sua condição de coisa. Porém, o máximo de impacto que sofria era uma ondulação quase imperceptível na milimétrica cúpula líquida, causada pelo sutil sopro que vinha dos basculantes.

Até que um dia aconteceu.

O singular episódio veio à tona modificando abruptamente toda aquela estrutura de água-vidro-cozinha que antes permanecia aparentemente constante, harmoniosa e gentil com a concretude da realidade: Uma infiltração, desbravada por um inabalável filete líquido, invadia paulatinamente a porosidade da construção e enfim rompeu o teto e tornou-se gota. 

Ficou suspensa, teimosa, entre manter-se contida no fluxo maior a que pertencia ou se deixar cair. Lá, de tão pequena, oculta dos olhares, era uma estalactite fluida e cristalina.

Contudo, numa tarde de quinta-feira, quase antes do morador chegar do trabalho, a gota caiu no copo d’água. A abóboda tremeu gelatinosa, resistente à mudança que a impulsionava. Mas sua obstinação foi vencida. Um fiozinho formou-se rapidamente na beira e escorreu qual lágrima na superfície do copo.

Em seguida, os outros fragmentos aquosos seguiam a liderança do primeiro e escapuliam do continente, uma pequena cascata que se formava em poça sobre a geladeira.

Insistente.

Contínua.

Inesgotável.

Caso o acontecimento pudesse ser presenciado por cientistas, certamente propiciaria diversas teses físico-químicas. Mas o apartamento estava vazio, somente ocupado por algumas moscas que voavam sobre a fruteira. O evento era incomum, a água transbordava do copo ininterruptamente. Em pouco tempo, já se poderia ver uma quantidade absurda, como que borbulhando, um pequeno vulcão que jorrava de si lava fria e transparente. Em jatos. Um chafariz insólito que vomitava repressões condensadas. As ondas invadiram os outros cômodos e depois arrombaram as portas e janelas, abatendo qualquer obstáculo que encontrava pela frente. Muitos moradores do edifício foram pegos de surpresa e atingidos pela enxurrada. Alguns feridos, outros em choque, outros estupefatos. O tsunami invadiu grande parte do centro: repartições públicas, empresas, indústrias e até templos religiosos. Desconfigurando a normalidade, instaurando o caos. O corpo de bombeiros foi acionado. Interditou o quarteirão. Repórteres, policiais, ambulâncias. Especialistas conjeturavam sobre as causas da tragédia. Engenheiros supunham um grande problema nas tubulações, embora essa possibilidade não justificasse o fato. Geógrafos desconfiavam de um lençol de água desconhecido que, por causas ainda não explicadas, resolveu balançar qual pano no varal.

Todavia, se tivessem consciência dos fatos, todos saberiam que foi apenas uma simples e inofensiva gota d’água.

Well Coelho
Enviado por Well Coelho em 27/01/2014
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