Muito Longe do Fim -Oitava Parte
'Minh' alma de sonhar-te anda perdida
Meus olhos andam cegos de te ver
Não és sequer a razão do meu viver
Pois que tu és já toda a minha vida.
Não vejo nada assim, enlouquecida
Passo no mundo meu amor a ler
No misterioso livro do teu ser
A mesma história tantas vezes lida!
Tudo no mundo é frágil, tudo passa
Quando me dizem isso toda a graça
Duma boca divina fala em mim
E olhos postos em ti digo de rastros
Podem voar mundos, morrer astros
Que tu és como Deus, princípio e fim..."
( Fanatismo, Florbela Espanca)
Depois daquele primeiro livro, os espíritos socorristas me presentearam com vários outros. O Evangelho, Dom Quixote, Romeu e Julieta, alguns romances, como por exemplo Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco. Também ele era um suicida. Mas o meu preferido eram os livros de Florbela Espanca. Eles me ecoavam na alma de uma maneira estranha. Aquela mulher da foto, morena de olhos tristes, me intrigava. Eu me sentia ligado a ela de alguma forma, mas mão entendia qual. Seria a dor e o sofrimento que nos irmanavam?
Agora as coisas estavam um pouco melhores. Toda semana Alexandre conseguia uma sacola de alimento com as equipes socorristas. Assim, a gente já não dependia apenas de morcego assado e frutinhas amargas para matar a fome. Também nos deram algumas roupas novas. Foi um alívio finalmente poder despir os trapos imundos de nosso funeral e usar roupas limpas. Eu já me sentia bem mais forte. Tudo graças aos cuidados incansáveis de Alexandre, que me protegia sob sua asa...
Ele também gostava de ler. A gente ficava por longo tempo, à noite, entretidos em alguma página, às vezes comovidos, às vezes rindo... depois que a temperatura caía bastante, eu me aninhava nos braços dele e a gente dormia assim.
Era estranho como a gente quase nunca pensava ou falava sobre a vida e as pessoas que deixáramos para trás na Terra. De alguma forma elas estavam apagadas de nossas mentes.Talvez fosse um bloqueio causado pela dor. Ou talvez eles não pensassem mais em nós. Mas isso não nos importava. Nós tínhamos um ao outro, havíamos construído um mundo só de nós dois. Ninguém mais tinha acesso a ele.
Também perdemos completamente a noção do tempo terreno. Eu lembrava que me suicidara por volta da meia noite de 9 de setembro de 2013, mas não tinha a menor idéia de quanto tempo decorrera desde então. Todo dia novas almas de suicidas desciam, no mais negro desespero, ao Vale. Fiquei sabendo pelos espíritos socorristas que o suicídio era uma verdadeira epidemia na Terra. E que o vale onde estávamos ficava numa dimensão bem próxima da Terra. E então, certo dia, quando Alexandre e eu fomos buscar nossa rotineira sacola de comida, eles nos fizeram uma proposta maravilhosa...
CONTINUA