Muito Longe do Fim - Sétima Parte
Passeio pelo Vale dos Suicidas e os Sonetos de Florbela Espanca.
Quando estava um pouco melhor, Alexandre me levou para dar um rolê lá embaixo, no vale sombrio. Fomos andando devagar. Eu não conseguia largara mão de meu amigo nem por um instante, sentia medo de tudo. Alexandre entrelaçou seus dedos nos meus e me senti mais confiante. No entanto, existia uma parte de mim, lá no fundo, que se deliciava com aquela fraqueza e dependência. Deixa quieto...
O vale é ainda mais feio e sinistro que eu lembrava.Quando cheguei, estava atordoado demais para perceber. Fede muito, como disse a Lavínia. Fede a carne podre, a queimado e sebo de vela. Caminhamos pelo chão barrento do qual eu me lembrava, por onde eu viera caminhando. Mano, parece que esse lugar está cada vez mais lotado de gente imunda e sofredora! Ou melhor, almas sofredoras... todos se parecem, todos choram e estão feridos e sangram, por dentro e por fora. Mas, no fundo, todos são diferentes, porque cada um carrega sua história e motivos particulares...
Alexandre olha para mim e sorri. Seu sorriso é o meu único raio de sol em todo um universo vazio.Enormes sombras dos dragões alados nos sobrevoam. Eles soltam gritos medonhos. Às vezes dão um rasante, carregam um infeliz nas suas garras e os jogam lá longe. Essas são almas particularmente culpadas, me explica Alexandre. São cor de terra, esses dragões. Suas asas gigantescas fazem um barulho de trovão. Os morcegos gigantes, nosso principal alimento, também passam voando. Preciso aprender a caçá-los, para ajudar meus amigos.
Foi durante aquele passeio que fiquei conhecendo os tais espíritos socorristas. Eram homens e mulheres de várias idades, todos muito simpáticos, usando calça e blusa branca, como os médicos e enfermeiros da Terra. Alexandre se relaciona muito bem com eles, conversa bastante, eles o tratam com carinho e simpatia. E, aos poucos, a sacola plástica que ele trouxera ia ficando cheia de maçãs, peras, mamão, chocolate em barra, pacotes de biscoito, e refri. Guaraná, Coca, até água mineral eles deram. Minha boca de enche de água. Em nenhum momento Alê larga a minha mão. Os socorristas me sorriem,acolhedores. Um deles me entrega um pequeno livro, com a foto de uma jovem morena e de olhos tristes na capa. Leio o título: Sonetos de Florbela Espanca.
Estranho o nome, nunca antes ouvira falar desa pessoa. Uma das entidades de branco me explica que ela era uma poetisa portuguesa, nascida em 1894, e que cometera suicídio em 1930. Também ela estagiara durante longo tempo ali no Vale.
- Vamos nessa, Passarinho. - disse Alexandre. - Por hoje você já andou bastante...
Nos despedimos dos benfeitores espirituais e rumamos de volta a nossa caverna-lar.
- Esse pessoal é gente fina. - dizia Alexandre. - Viu quanta comida conseguimos?
- Um banquete, cara... - respondi.
- Vamos ter um jantar e tanto hoje, Passarinho...
Olho para o livro, intrigado.
- Por que será que eles me deram isso aqui? - pergunto.
Alexandre faz um gesto vago.
- É que deve ter alguma coisa aí que você vai gostar. - opina.
Chegamos, Alexandre me ajuda a subir. Ao chegarmos, penso que, apesar de tudo, ainda somos privilegiados por termos uma caverna para nos abrigar. O povo que ficava ao ar livre, além da aglomeração e do mau cheiro, e do calor de dia e do frio à noite, ainda tinha de suportar os ataques dos dragões alados e às vezes, chuvas horrendas, de sangue...
Estou cansado, vou direto para a nossa cama. Alexandre traz a sacola, e então, como ele mesmo dissera, temos um jantar daqueles. Comemos frutas, chocolate e bebemos refri até fartar. Nos empanturramos e guardamos o que sobrou para o Peu e a Lavínia, que devem aparecer logo. Alexandre ri e diz que estou com a cara lambuzada de chocolate. Passa o dedo e lambe. Ele vai arrumar umas coisas, cantarolando. Recostado no travesseiro, de repente meus olhos caem sobre o livro que eu ganhara. Eu o pego e começo a folhear, sem grande interesse. Florbela Espanca...porque ela teria cometido suicídio?
De repente um poema me chama a atenção.Fumo, é o seu nome. Começo a ler em voz alta, e minha voz ecoa entre as pedras da caverna.
" Longe de ti são ermos os caminhos
Longe de ti não há luar nem rosas
Longe de ti há noites silenciosas
Há dias sem calor, beirais sem ninhos.
Meus olhos são dois velhos pobrezinhos
Perdidos pelas noites invernosas
Abertos, sonham mãos cariciosas
Tuas mãos doces, plenas de carinhos.
Os dias são outonos, choram, choram
Há crisântemos roxos que descoram
Há murmúrios dolentes de segredos
Evoco o nosso sonho, estendo os braços!
E é ele, oh, meu amor, pelos espaços
Fumo leve que foge entre os meus dedos..."
Termino de ler e fico pensando, olhando para as rochas do teto... só então reparo que Alexandre me observa sorrindo.
- O amor é isso,Passarinho... - ele diz, vindo para junto de mim. Olho nos olhos dele e, não sei o motivo, sinto a cara arder... como diria Florbela Espanca.