Uma amante quase (ir)real
Uma amante quase (ir)real
31/12/1999. Falava-se muito em Bug do Milênio, um erro de lógica que estava previsto para ocorrer em todos os sistemas informatizados na passagem do ano de 1999 para o ano 2000.
Naquele dia acordei assustado com o barulho dos fogos. Na parede, rabiscos...Uma poesia e uma frase que abaixo as transcrevo:
“Surreal
Pelos azuis paralelos ando sem destino,
fitando um olhar profundo no infinito
persigo o vasto lume das estrelas
Fasto e livre varo longínquas fronteiras.
As pedras em que piso conhecem meus passos
e a mente vagueia por sidéreos espaços...
Dentro deste mundo é onde me externo,
crio, vivo e gozo deste universo.
Afora esse contexto o regalo é inatingível;
O horizonte que vejo é sempre inalcançável,
mas tendo este pretexto o sonho é possível.
A gana de viver me faz inesgotável;
Meu espírito liberto faz-se permissível
em ser feliz num mundo são e imaginário.”
“O louco só experimenta a tristeza quando surta a lucidez, pois percebe que infeliz é ser normal”.
Aquilo parecia não fazer muito sentido, nem mesmo sabia que tinham sido escritas por mim. Ainda atordoado, com o corpo entrevado pela impregnação de neurolépticos, caminhei com dificuldade até o banheiro para lavar o rosto e ao me olhar no espelho senti uma estranheza, não me reconheci... Estava mais velho, com o rosto engelhado, cinzento e resseco. Meus olhos, vermelhos, passeavam perdidos pelos arredores da casa. Eu ouvia uma balbúrdia, mas não sabia de onde vinha, tinha muita gente dentro da casa: filhos amigos e alguns parentes. Eu estava meio perdido dentro daquela realidade. Chamei pela minha esposa e para a minha surpresa quem me atende é Dulce, aminha amante. Há algum tempo que não me dava tão bem com ela. Mesmo gostando muito dela sentia-me perseguido e ameaçado, temia ser descoberto por Clara, minha esposa, e assim arruinar o meu casamento de 12 anos. Ela, por sua vez, não ficou brava por eu ter trocado seu nome. Irrequieto, disfarcei e perguntei-lhe como eu teria ido parar ali, na casa dela, e ela, serena, me responde que eu estava em minha própria casa e com toda a minha família presente.
Fiquei ainda mais confuso quando os meus filhos se aproximaram e a chamaram de mãe. Eles já não eram tão pequenos quanto antes. Sorrindo, me abraçaram, beijaram o meu rosto e me desejaram feliz ano novo. Como poderia eu estar na casa de minha amante junto com meus filhos? Achava eu que meus filhos nem sabiam da existência da Dulce... Tudo parecia muito estranho ao mesmo tempo em que muito familiar: a casa, a mobília e o comportamento de todos, inclusive o meu... Onde estaria Clara, a minha esposa? Será que ela teria partido por descobrir que eu tinha uma amante? Será que ela teria morrido? Naquele momento eu não compreendia nada, tudo estava muito confuso... Estaria eu dentro de um sonho onde se acorda, dentro do próprio sonho e se tem a sensação de que está se vivendo o real? Belisquei-me tentando sentir se estava verdadeiramente acordado e percebi que tudo que se passava ali era mesmo real.
Sentindo tanto desconforto, resolvi voltar para o quarto e pedi para que não me incomodasse, fui ler algo para que pudesse me desligar daquele momento tenebroso, onde nada parecia ter nexo. Passado algum tempo resolvi assistir a TV que estava fazendo uma retrospectiva dos fatos ocorridos no ano de 1999 e de quase nada que se mostrava na TV eu conseguia me lembrar. Seria uma amnésia? Será que o Bug do Milênio havia atingido meu cérebro? Não podia ser, pois eu reconhecia Dulce e meus filhos e lembrava-se da existência de Clara. Só não sabia onde ela poderia estar naquela hora, nem o que tinha acontecido para que eu estivesse na casa da minha amante juntamente com meus filhos e eles a chamando de mãe. Quanta confusão...
Intrigado com tantas dúvidas, resolvi chamar Dulce novamente, pedi para que fechasse a porta do quarto para que as crianças não ouvissem a nossa conversa e lhe indaguei o que acontecera com Clara. Ela parecia ter as respostas, mesmo assim me pediu um instante. Saiu e foi até a cozinha. Depois de alguns minutos ela voltou com uma medicação um copo de água na mão e pede para que eu tome, diz que é para me acalmar e que vai me explicar o que aconteceu. Mesmo imaginando que poderia estar sendo envenenado, obedeceu... Dentro de poucos minutos apaguei, mergulhei novamente na letargia... Acordei, depois de 12 horas. Clara estava ao meu lado. Mais uma vez a estranheza me rondou... Agora estava num quarto, com odores fortes de éter e de outros fármacos, com pessoas estranhas próximas a mim. Ainda muito confuso , lembrei-me da noite anterior e agora era a Clara que eu indagava, perguntei o que tanto queria saber. Onde eu estava agora? Onde estaria Dulce agora?
Com um largo sorriso, Clara me abraçou e me respondeu que ela era a minha amante, a Dulce e que também era a minha esposa, a Clara. Descobri que eu estava, na noite anterior, em casa para passar o Réveillon junto com ela e com meus filhos e que já havia retornado ao hospital. Era um hospital psiquiátrico onde eu estava internado há mais de cinco anos com diagnóstico de esquizofrenia.
Eu não tinha nenhuma amante além da minha própria esposa. Clara e Dulce, na minha vida, eram a mesma pessoa e que tudo aquilo não passava de mais um desvairo. Parece que agora eu estava num dos meus raros momentos onde a minha lucidez oscilava intercalando os grandes períodos de delírios... Tristonho, com o olhar embotado, esbocei um fosco sorriso e me calei... Compreendi e vi sentido naquilo que havia rabiscado na parede do quarto.
Beto Acioli
31/12/2013