Muito Longe do Fim Quinta Parte
Morcego assado! Lembro do hambúrguer do Mc Donald, das batatas fritas, do arroz e feijão da minha mãe, e começo a rir e chorar ao mesmo tempo.
- Morcego?! Você... você não espera que eu coma isso, Alê!
Alexandre aproxima-se da fogueira com uma faca e um prato, e trincha um pedaço do morcego com toda a calma, da mesma forma como se estivesse cortando um churrasco na Terra.
- É só o que tem, Passarinho... - respondeu. - Além de algumas frutinhas que a gente cata por aí. É isso ou passar fome... - aproximou-se de mim com o prato. - Mas te garanto que não é tão ruim quanto parece. A gente se acostuma.
Eu recuo, enojado.
- Não quero!
- Prova... - ele insiste com brandura. - Tem um gosto parecido com frango. - oferece-me um bocado espetado num garfo. - Você não confia em mim? Estou aqui para cuidar de você...
O olhar dele, tão cheio de afeto, acaba por me convencer. Respiro fundo e provo a carne de morcego que ele me oferece com tanto carinho. Fico surpreso... é macio e tem mesmo um sabor que lembra carne de frango. Engulo, e Alexandre me oferece mais um bocado, e eu como, e assim termino por comer tudo o que está no prato. Ele sorri.
- Viu, Passarinho? Não é tão ruim...
Balanço a cabeça, confuso.
- Isso tudo às vezes parece um sonho... - digo de repente. - Acho que de repente eu vou acordar lá em casa, e vou ver que estava tendo um sonho, e que você... - começo a chorar. - E que não vou ver mais você!
Alexandre me abraça e começo a soluçar. Peu vinha chegando, e conversava com alguém.
- O Peu trouxe a Lavínia pra gente conhecer. - diz meu amigo, secando minhas lágrimas com a mão.
Peu entra, acompanhado de uma moça ainda muito jovem. Percebia-se que era bonita, apesar dos longos cabelos desgrenhados, do vestido sujo de sangue e das cicatrizes nos pulsos. Ela nos abraça, diz que era nossa fã. Sentamos em volta da fogueira. Todos se servem de morcego assado, e conversam bastante animados. Também bebemos uma água turva, a única que existe naquele lugar, e nossa sobremesa eram umas frutinhas semelhantes a bolotas de carvalho, mas amargas pra cacete.
- Ele está estranhando nosso jantar. - comenta Alexandre, apontando para mim.
- Ah, é o primeiro dia, cara. - diz Peu. - Normal... aqui não é nenhum hotel cinco estrelas, mas a gente se acostuma...
- Quem me dera poder ficar aqui com vocês. - diz Lavínia. - Lá embaixo no meio da galera é muito pior. Fede demais, e é muito quente...
- Vou pedir autorização para os administradores daqui. - responde Peu com doçura, estreitando a mão da namorada. - Vamos lá ver se conseguimos falar com eles?
Lavínia olha para Alexandre, um pouco tímida.
- Antes eu queria pedir uma coisa pro Chorão. Canta pra mim?
Ele sorri.
- O que você quer que eu cante?
- Céu Azul. Era a minha canção preferida...
Então Alexandre canta, e sua voz ecoa suave por entre as pedras da caverna.
" Tão natural quanto a luz do dia, mas que preguiça boa, me deixe aqui à toa, hoje ninguém vai estragar meu dia, só vou gastar energia pra beijar sua boca... fica comigo então, não me abandona, não... "
Meu coração bate mais forte. Lembro de nossa vida na Terra, nossos shows... Peu e Lavínia saem, Alexandre vai até um canto e volta com uma pilha de cobertas e travesseiros.
- Agora você precisa descansar, Passarinho. - ele me diz. - Você andou muito pra chegar até aqui...
De fato, eu me sentia exausto... mas tudo me intrigava naquele lugar.
- Como é que vocês conseguem esses bagulhos aqui? - pergunto, apontando os cobertores de pelúcia e os travesseiros.
- Isso? Ah, são os Benfeitores Espirituais que vêm aqui no Vale quase todo o dia e nos deixam algumas coisas. Aqui o clima é tipo deserto, sabe? À noite esfria bastante... é melhor a gente ficar perto do fogo.
Eu observo seus movimentos enquanto ele prepara um leito com todo o cuidado, num dos cantos da caverna. Dobra alguns cobertores, coloca dois travesseiros e me chama para deitar. Desabo sobre o leito improvisado, sentindo uma fraqueza estranha... Alexandre se deita ao meu lado, e por algum tempo o silêncio é quebrado apenas pelo guincho incessante dos morcegos e as lamentações das almas no Vale. As chamas da fogueira e a carcaça quase devorada do morcego projetam sombras absurdas na parede.
Logo começo a bater o queixo de frio. Alexandre me abraça.
- Vou te aquecer, Passarinho...
- Ai, que frio...
- Dorme... estou aqui ao seu lado.
Mas não consigo dormir. Ele segura a minha mão e sorri. Dessa vez tenho certeza de que ele pode, de fato, ler meus pensamentos.
- Eu sei... você tem medo de dormir e quando acordar eu não estar mais aqui. Perde a esperança, Passarinho... não vou arredar pé do seu lado. Nunca mais...
Baixo os olhos, um pouco envergonhado. Palavras começam a brotar de meus lábios, contra a minha vontade.
- Sabe, Alexandre? Depois que você morreu, nada foi igual. Era tudo tão vazio... nada tinha graça. Você sempre foi meu porto seguro... mesmo que eu estivesse longe, sabia que tinha um ponto de referência para onde voltar. Você... - meus olhos se encheram de lágrimas novamente. - Mas, se eu não tinha mais você... eu não tinha chão...
Escondo o rosto no peito de meu amigo e choro convulsivamente. Ele me acaricia os cabelos, dizendo:
- Chora, Passarinho... bota tudo pra fora. Eu sei que errei muito também. Chora...
E eu choro, ao mesmo tempo, de tristeza e alegria, até adormecer...
CONTINUA