Uma amante (ir) real

Uma amante (ir) real

"O louco experimenta a tristeza quando surta a lucidez, pois percebe que infeliz é ser normal."

31/12/1999. Naquela época falava-se muito em Bug do Milênio, um erro de lógica que estava previsto para ocorrer em todos os sistemas informatizados na passagem do ano de 1999 para o ano 2000.

Zaqueu acordou assustado com o barulho dos fogos. Ainda atordoado, com o corpo meio entrevado pela musculatura rígida, caminhou com dificuldade até o banheiro para lavar o rosto e ao se olhar no espelho sentiu uma estranheza, não se reconheceu... Estava mais velho, com o rosto engelhado, cinzento e resseco. Seus olhos, vermelhos, olhavam perdidos para os arredores da casa. Ele ouvia uma balbúrdia, mas não sabia de onde vinha, tinha muita gente dentro da casa: filhos amigos e alguns parentes. Ele estava meio perdido dentro daquela realidade. Chamou pela sua esposa e para sua surpresa quem lhe atende é Dulce, a sua amante. Há algum tempo sentia-se perseguido por ela, pois há muito que ela queria destruir o seu casamento. Ela, por sua vez, não ficou brava por ele ter trocado seu nome. Zaqueu disfarçou e perguntou como teria ido parar ali, na casa dela, e ela, serena, lhe responde que ele estava em sua própria casa, com toda sua família. Ficou ainda mais confuso quando os seus filhos se aproximaram, eles já não eram tão pequenos quanto antes. Sorrindo lhe abraçaram e lhe desejaram feliz ano novo. Como poderia ele estar na casa de sua amante junto com seus filhos? Achava ele que os filhos nem sabiam da existência da amante... Eles, alegres, a chamavam de mãe. Tudo parecia muito estranho: a casa, a mobília, sua família e o comportamento de todos, inclusive o seu... Onde estaria a sua esposa, a Clara? Será que ela teria partido por descobrir que ele tinha uma amante? Será que ela teria morrido? Naquele momento ele não compreendia nada, tudo estava muito confuso... Estaria ele dentro de um sonho onde se acorda, dentro do próprio sonho e se tem a sensação de que está se vivendo o real? Ele se beliscava, tentando sentir se estava realmente acordado e percebia que tudo era mesmo real.

Sentindo tanto desconforto, resolveu voltar para o quarto e pediu para que não o incomodasse, foi ler um romance para que pudesse se desligar daquele momento onde nada parecia ter nexo. Depois de duas horas de leitura resolveu assistir a TV que estava fazendo uma retrospectiva dos fatos ocorridos no ano de 1999 e de quase nada que mostrava na TV ele conseguia se lembrar. Seria uma amnésia? E como ele se lembrava da sua esposa, da sua amante e de seus filhos? Só não sabia onde estaria Clara naquela hora, nem o que tinha acontecido para que ele estivesse na casa da sua amante juntamente com seus filhos e eles a chamando de mãe. Quanta confusão... Intrigado com tantas dúvidas resolveu chamar Dulce, para lhe perguntar sobre Clara, sua esposa. Pediu para que fechasse a porta do quarto para que as crianças não pudessem ouvir sua conversa e ela lhe pede um instante. Sai e vai até a cozinha e ao voltar com um copo de água na mão pede para que ele tome quatro comprimidos, diz que é para lhe acalmar e que vai lhe dizer o que aconteceu. Obedeceu, porém apagou. Acordou, depois de 10 horas, Clara estava ao seu lado. Mais uma vez estranhou o ambiente... Agora era um quarto, com odor forte de éter e com pessoas estranhas nas proximidades. Lembrou-se da noite anterior e lhe perguntou o que tanto queria saber. Onde ele estava agora? Onde estaria Dulce agora? Com um largo sorriso, Clara lhe abraçou e lhe respondeu que era a sua esposa e amante, que Dulce, na realidade, nunca existira, disse-lhe que ele estava em casa para passar o Réveillon junto com ela e com seus filhos e que já havia retornado ao hospital. Era um hospital psiquiátrico onde ele estava internado há mais de cinco anos com diagnóstico de esquizofrenia. Ele não tinha nenhuma amante além da própria esposa. Clara e Dulce, na vida dele, eram a mesma pessoa e que tudo aquilo não passava de mais um desvairo. Parece que agora ele estava num dos seus raros momentos onde a sua lucidez oscilava intercalando os grandes períodos de delírios... Calado e tristonho esboçou um pequeno e forçado sorriso...Compreendeu.

Beto Acioli

31/12/2013

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