Três nunca é demais

Dr Fernando tinha uma rotina um tanto burguesa demais para seu status social bem definido, pudera, era um médico, cabelos já grisalhos, mulher em casa, filhos na escola, estetoscópio no pescoço e pacientes a cuidar. Seu dia era estafante, seus olhos gatunos contavam estórias de persuadir qualquer estoico a uma noite de devaneios, e assim ele conseguia cumprir sua profissão de psiquiatra, sim, ele cuidava de “loucos”, mas preferia chamá-los de incompreendidos, e salvava vários deles de uma autodestruição(um eufemismo próprio para suicídio), e assim vivia até o meio dia.

Pelo almoço passava em casa, ainda com a boca de Rivotril beijava a mulher, a dona do lar, a cozinheira, a psiquiatra do psiquiatra, e com afeto comia tudo que tinha a seu dispor, salada, carne, arroz, tudo aquilo que seu corpo precisava para enfrentar o resto do dia. Não, ele não comia sobremesa, achava a vida amarga demais para isso...Seria surreal quebrar um salgado almoço com um pudim, quando de tarde viveria de cafés e adoçante. Fernando era realista.

Quando o tempo alertava 1 da tarde ele num rompante se levantava de sua sesta e corria para o banheiro, saía novo, limpo, culto, branco, médico e seguia para a labuta, passava a tarde em conselhos de não-separação, controlar ansiedade, frear vícios, e se despedia do consultório assinando cheques que deveriam ser depositados ao longo da semana. Não, Fernando não gostava da segunda-feira, e sim, ele é normal.

A noite ia chegando e com ela seu tratamento, sentava-se na cadeira, ao lado de moribundos, maltrapilhos, pais de família e ouvia, não com ouvidos atentos, mas estava ali se é que bastava... Ao fim da reunião se despedia dos poucos que tentara conversa e falava com o administrador de tudo, e pedia conselhos como quem não se identifica com as falas de estranhos, depois de tudo ia ao bar, afinal de contas como ele ia desaguar sua pressão...

Seu Casimiro também vivia, nem mais nem menos que Dr Fernando, simplesmente não cumpriam o mesmo papel, enquanto um parecia entender dos problemas dos outros, o outro precisava que compreendessem o seu problema, queria ser reconhecido, achado, queria ter voz ativa. Seu Casimiro vivia pelas ruas, sim, era mendigo, não desses que carregam placas de misericórdia ou trajam roupas de campanhas de vereadores, ele participava do que se pode chamar de “nata” da sarjeta, não queria muita conversa com os outros, via tudo como espectador que já previa o final inexorável e inevitável.

Alguns dias se seguiam melhores que outros, gente mais piedosa dava atenção a esse lado, outros se abaixavam e tentavam manter diálogo com essa personalidade, no mínimo, faminta, era uma fome diferente a que sentia Casimiro, era fome de presença, ânsia de liberdade, é um querer gritar na multidão... Sim, ele queria ser dono de seu destino.

Não tendo muito o que fazer, Sr Casimiro era obrigado a criar amizades com base em que benefícios essas o trariam, ou seja, garçons, secretárias, pessoas com quem Dr Fernando nunca olharia... Sim, ele era humano, e não, ele não gostava de contato. Quando tudo aquilo que ele chamava de corpo estivesse satisfeito, era hora de alimentar a piscina de mágoas... E Sr Casimiro juntava s trocados que ganhava quando os poucos cultos passavam e liam em sua placa um poema de Pessoa, e com eles ia ao bar.

E de outro lado da rua tínhamos Sr Souza, um senhor também de cabelos grisalhos, também tinha mulher e filhos para cuidar, mas preferia cuidar de sua carrocinha de sorvete, essa era sua sina. Sr Souza sempre foi dono de um sonho secreto de ser dono dos sorrisos do mundo, vai ver que por isso uma parte dele quisesse ser Psiquiatra, e outro queria ser mendigo, não um mendigo qualquer, mas daqueles que agem mais como palhaços... Sim, ele queria ser palhaço, e não, ele não tinha vergonha disso...

Sr Souza era conhecido por sua simpatia contagiante, sempre muito solícito chegava a fazer entrega de sorvetes para as crianças mais conhecidas, tinha um coração muito grande, ruim para os negócios... Mas amava o que fazia. Pela hora do almoço não tinha tempo de ir em casa visitar a mulher suada e beijá-la com a boca de Flocos, e por isso se satisfazia indo comer esfirras numa barraquinha, mas tinha vantagens secretas como sempre estar servido de sobremesa...

Não tinha muito o que reclamar de dinheiro, mas para ter direito aos supérfluos que as tentações dos intervalos comerciais da TV lhe mostravam, era preciso trabalhar mais, e para isso ele fazia bico de garçom no barzinho aos fins de semana. E lá houve o dito encontro, Sr Fernando pediu seu uísque, Sr Casimiro contou as moedas de sua caninha, e Sr Souza serviu aos dois, o encontro improvável levou a noite toda acontecendo, houve estranhamento, confronto de realidades, discussões, até que no fim da noite todos saíam de lá como Fernando Casimiro de Souza, um palhaço que ficava ao semáforo, a tirar angústias.

Gabriel Amorim 27-12-2013

Gabriel Melo Amorim
Enviado por Gabriel Melo Amorim em 30/12/2013
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