AO CHÃO CELESTE

Quando me dou ao mundo como homem, como pensante, sinto a vida rondar a vastidão de terras e águas. Cada minúsculo ser com seu propósito, cada escolha com sua conseqüência, me escolhi humano! Se essa foi a resposta ou escolha certa, estou para saber...

No limiar da evolução, se fui pó ou chipanzé, não penso nisso, poeira estelar é bem mais bonito, um estrondo no vácuo, quem sabe sombras?! Fiz-me de alguma maneira. Sou um observador dos astros, ponho-me num avançadíssimo telescópio a analisar o céu negro, não vejo gente nem som, só luzes, às vezes ofuscantes, mais das vezes pálidas, meus olhos se confundem, fico a matutar, quase sempre durmo.

No inicio era apenas vazio. No entanto, um vazio repleto de caminhos sem ninguém para andar. Um vácuo constante de falta de tudo, somente corpos e brilhos de lugar algum. Tudo estava lá, mesmo sendo vazio, assim como em outro começo, quando, como mágica, a escuridão emerge sem poesia e o dia brilha de uma maneira boa num globo sem sentido que do nada surge coberto de um manto azul e verde, e, sob pressão, um estouro, uma explosão, eu nasci. Pergunto-me se sou vazio. Milhares de vezes me pus de frente às lentes para que alguém me examinasse, me abrisse e falasse do que gira lá dentro: falaram-me de pele clara, às vezes escura, depende da noite ou do dia, os astros não mentem. Percebemos que uma pequena partícula de um som bombástico também seria pó. Ainda não vejo essas partículas brilhantes.

O homem evoluiu ao máximo de si. Do vazio para o vazio, todas as criaturas de Deus vazias. Li alguns livros velhos, desses que ficam eras na cabeceira, para entender um pouco o mundo, sofro de um mal que a literatura não explica, sofro de dúvida, me recolho ao pó e recolho meu pó, penso noutra evolução. O homem, a mulher, minha costela, os fragmentos estelares que afetaram minha visão e meu pensamento, isso dói só de pensar na hora do grande feito, e lembro-me que meus tentáculos mudaram de forma e que meus pêlos assim como meu cérebro se encolheram, e nada restou para que eu pudesse lembrar meus antepassados. Na verdade sou um primata moderno, vestido com palavras de outros iguais a mim, e quando me ponho de frente ao espelho vejo que tudo isso deve ter sido muito bom em outros tempos. E por fim, esqueço tudo e volto às lentes e as aponto à floresta à frente. Quem será que guarda o escuro esverdeado noturno diante dos meus olhos?

Como fui feito ou explicado tendo a esquecer, quem pensa nisso? Com tanta coisa a fazer e a comprar, tenho que olhar o espaço e nem sei por que. A cada meia hora fixo-me a saturno e pergunto se alguém olha de lá para mim. Talvez uma inteligência cansada de buscar inteligência aqui. Saturno é a noiva do espaço, eu sou casado com a solidão, sou humano, e quem nunca se viu só. Sofro daquele mal, aquele mal de duvidar.

Não me importo muito com questões feitas por nós que nos colocam como a chave do universo, porque somos humanos perto da morte, porque é na beirada da morte que sentimos o ser que somos, e não antes. Estranho, eu pensar nisso, eu que nunca me dei ao luxo de metafísica e de contestar-me, será que estou a morrer, discutindo questões erradas sobre mim? Quem está no espaço? O outro? Não importa o quão perfeita as coisas se fez, nem as rodas de conversas que respondem o mundo, seria bem mais fácil começar do pequeno e criar sua própria criação, viemos dos vermes que nos come, quando a carne já não agrada o mundo e nem as palavras exprimem respostas. O próprio verme larva que entra e sai da nossa boca. Quando já deitados, sorrimos com a queda do maxilar: sou humano! Bem que deveríamos dizer isso nessa hora, na hora mais bonita em que os vermes andam por nosso céu e nossa arcada sem palavras. Saio dos astros e me dou ao chão, perderei meu emprego.

Lidar com isso é pecado. Temos que respeitar os vermes e a criação. Minha insônia forçada me faz delirar. Olho para o céu e vejo cavalos voadores, unicórnios e uma fênix correr por essa base, todos caem. Será que esses bichos são comidos por vermes, essas larvas que nos faz ser pó e come até o macaco que uma vez quis ser gente? Como também as folhas do livro que eu lia, e nada se explica. Perto da morte me vejo revestido por completo de tudo que minha genealogia impôs, e, quando em duvidas, mergulho dentro de mim em busca do começo e acabo por agarrar-me ao que primeiro me vem a cabeça. Vejo as coisas hoje, e me assusto com o fato de ter medo de seres parecidos comigo, tão humano quanto a coisa que nos define como pensante. Temos somente a vida para escorrer apressada neste emaranhado nebuloso de existência. Ela anda comigo, assim como a morte em sua paciência, dando aos seres a dádiva de na terra renascer em forma de ramos, devido à essência de pó-gente que virou estrume embaixo do solo. Vou voltar um pouco ao espaço, mas com a certeza do chão.

Uma cadente passa diante dos meus olhos e logo desaparece no ar, sua poeira luminosa corta o céu da minha visão e o mundo se torna tão pequeno quanto minha capacidade de enxergar onde o horizonte se finda. Com tal observação, pergunto-me se não somos mesmo de estrelas. Dúvidas? Os órgãos armados dentro de mim fazem perguntas que não cessam, e quando vejo minha imagem sem muita semelhança com o que paira na via láctea, penso que sou um ser sem porto, sem útero, em busca de uma imensidão que supera meu pensamento, quando apodreço, vejo o vazio cavando o vazio para enterrar o vazio, pois assim, preparamos nosso discurso fúnebre, perdendo a essência dos vermes, ganhado a escuridão do espaço, quem sabe desta forma poderíamos gritar que somos humanos! O sepultamento espacial deve ter suas vantagens, quem se importa com as larvas, caso elas se atrevessem a me comer seriam levadas pela gravidade, nisso se misturariam todas as criações.

Estou só num quarto escuro, olhando o espaço e tentando enxergar no véu negro da noite os bichos mitológicos que me foram imposto, e admirado com o fato de que uma parte de mim foi a ascensão de meu oposto, fico feliz que isso tudo seja comigo, mas quando esquecemos essas coisas e vemos humanos como humanos é que a historia muda de contexto e as cores, por mais escuras que sejam, ficam completamente negras.

Cansei de tanto olhar estrelas paradas, cansei de esperar uma nova explosão, uma nova evolução, cansei de esperar ver estrelas transformar-se em gente, ou pensamentos perfeitos emergirem do pó, somos humanos e ponto, somos bichos, desses que rodam a floresta e se assusta com o fogo, destes que constrói casas e moram na rua, ou como os que vivem e matam, e bichos são bichos. Se eu consegui me curar da dúvida? Ainda não. Amanhã Conversarei com os astros e com o vazio do espaço, mas nunca mais me darei ao luxo de tentar imaginar os seres que me rodeiam, porque quanto mais pensamos sobre isso, acabamos por ficar glorificados e agradecidos com os vermes que também são criaturinhas de Deus.

Silvestre C. Cantalice Filho

Publicado no livro

Contos Selecionados de Novos Autores Brasileiros.

Ed. 1º Abril de 2009

ISBN: 978-85-60489-26-8

Silvestre Cantalice
Enviado por Silvestre Cantalice em 30/12/2013
Reeditado em 19/07/2018
Código do texto: T4630119
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