As formigas

Sempre me impressionaram as formigas. Dizem que nenhuma espécie é capaz de manter-se de pé ante um ataque em massa seu. Li, há muito tempo, em algum canto, que elas muito se assemelham aos homens, que possuem um sistema corporativista, por assim dizer, extremamente complexo e que, além de tudo, exercem a escravidão. Mas não sei se foi por isso que senti medo naquele instante. Jamais poderia garantir. O carro parou, paguei, saí: nem bem abri a porta da sala, estaquei diante duma trilha densa e fervilhante de negras formigas.

Um terrificante calafrio percorreu meu corpo.

Considerei, ao cabo dalguns segundos, a impossibilidade de se decidir de onde chegavam e para onde tencionavam ir. Minha cabeça latejava e eu sentia persistente tontura, direitinho um marinheiro ébrio chegando de dificultosa viagem.

Posso, no mais de minhas forças, regressar algumas horas no tempo de minha tortuosa história; mais que isso seria organicamente inalcançável. Se quisesse poderia lembrar o rosto do chofer que me trouxera e, com algum esforço, talvez até sua voz pudesse recuperar. Não poderia, entretanto, precisar como fui parar no centro da cidade, e como fui embrenhar-me na cavernosa taverna em cuja mesa despertara com a cabeça em ponto de explosão. Fuço a memória com toda energia de espírito que me resta e, contudo, não sou capaz de compreender a raiz desse mistério. De todo modo, agora mesmo, já não me resta tempo. Sei que errei por becos e ruas em total escuridão. E somente quando achei uma avenida principal, pude perceber que meu relógio de pulso, presente de Pietra, havia sido roubado. Ou, pelo menos, foi o que me ocorreu naquela sinuosa hora que eu sequer conhecia. Andei muito até poder reconhecer onde me encontrava; foi quando um táxi parou e, com mais calma, pude rumar para casa.

Sentia-me, todavia, horrivelmente posto em mim, como se não tivesse mesmo em pleno domínio de meu corpo; mas como se tivesse sendo guiado por algum movimento sonâmbulo de pernas, em meia lucidez. Fui à cozinha atrás de água que aplacasse minha sede. E não foi pouco meu espanto ao perceber o assoalho tomado pelas formigas. O chão xadrez, em certas áreas, quase não se distinguia. O mais estranho, porém, era a maneira como se movimentavam e organizavam, parecendo mesmo um todo consciente, orquestrado: saiam de todos os ângulos do cômodo e de debaixo de todos os armários e tapetes, e avolumavam-se e seguiam.

A trilha parecia ficar mais vultosa a cada segundo; e, de fato, as formigas surgiam de todos os lugares, e a marcha afigurou-se ameaçadora, hostil.

Segui o extenso pelotão, cada vez mais assombrado com todo aquele volume. A rigor, quanto mais luzes se acendiam, mais formigas apareciam: de todos os buracos e gretas, formando uma horrível serpente cujo corpo ziguezagueava por toda a extensão de minha casa. Um ruído contínuo se destacava de todo o alvoroço, qual água em ebulição.

Com dificuldades, pude subir as escadas, apavorado; decerto só o horror me movia. A cobra gigantesca entrava pela porta de meu quarto e só então me lembrei de Pietra. E era impossível avançar mais. Da porta, no entanto, pude ver a pior cena de minha existência e, sabia, não era pesadelo. Pietra estava morta, com os olhos arregalados e meu punhal atravessando seu tórax, cravado na cama. As formigas já lhe tinham devorado os pés, subido pelas pernas, tragado as coxas, e, então, entravam em Pietra e lhe arrancavam as entranhas.

Caí, sem vida, no chão.

Despertei gritando com todo o fôlego que havia em meus pulmões, mas, outra vez, silenciei: minha cabeça estava repousada no colo de Pietra, e ela cuidava do ferimento em minha testa.

Quando recuperei, como pude, o senso da razão, percebi que havia algo de estranho com minha mulher. Seus olhos haviam perdido a cor de avelã e concentravam-se inteiramente negros em cima de meu rosto. Ela não untava meu ferimento com iodo; passava, antes, sua língua furtivamente por sobre meu sangue, sugando-o e me encarando com funesto olhar.

Seus braços pareciam mais longos e mais finos; mas eu, por minha vez, não me importava, estava entregue: bastava-me permanecer em seu domínio. Vi brotarem de suas costelas dois outros braços, mas isso também não me incomodava, estava emaranhado em Pietra; sentia que, às vezes, cochilava e sempre que recobrava a lucidez, Pietra parecia mais desfigurada. Antes do sono me levar para sempre, só pude imaginar que talvez a maior semelhança entre as formigas e a humanidade fosse a sede de sangue.

Welliton Oliveira
Enviado por Welliton Oliveira em 26/12/2013
Reeditado em 26/12/2013
Código do texto: T4625887
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