A CASA
Eu estava sozinho, andara rumo a minha casa na colina, minha bela casa no alto do pequeno vilarejo. Era um dia como qualquer outro, normal, sem nada de estranho. Porém, havia uma casa. Uma casa sem dono, sem portão, sem cachorro. Era uma casa sem graça, numa cidade sem graça, num dia sem graça. Mas, não sei por qual motivo, ela me chamava à atenção. Eu então me aproximei de sua velha porta, para minha surpresa estava aberta. Ao adentrar nela não vi nada de diferente. Podia ver o hall de entrada com uma escada engraçada que dava acesso a três portas. Ao lado tinha a sala de estar, sem TV, com apenas uma cadeira velha e uma harpa, com um formato que lembrava o rosto de uma mulher. No outro lado um cômodo que era pra ser a cozinha, mas que não tinha fogão nem pia, nem mesa nem geladeira, apenas alguns armários vazios. Era realmente uma casa sem graça. Eu então pensei em sair de lá, pois, não tinha nada demais, porém, lembrei-me de três portas no andar superior, e como minha curiosidade falou mais alto, fui em direção à escada e as portas. Eram três portas e três cores, para cada uma delas uma frase: “Azul, para seguir ao sul”, “Amarelo, calce os chinelos!” “Vermelho, não ouça o conselho nem olhe para o espelho, siga os seus joelhos!”. Eu li as três frases e comecei a rir, de fato, aquelas frases eram as mais ridículas que eu já lera! Eu então apontei o dedo e aleatoriamente escolhi uma das portas, entrei pela porta amarela. Em frente essa porta, tinha dois calçados velhos, sujos e acabados, eu não tiraria meus tênis novos para calçar aqueles chinelos velhos. Ignorei-os e adentrei a porta amarela. Quando entrei me assustei, vi uma cena a qual eu nunca pensei que fosse possível de se acontecer. Eu via pessoas caindo sem parar! Era como uma chuva de pessoas! Eram pessoas de todas as idades: jovens, crianças, adultos, velhos... A sala parecia uma passagem para o céu, era tudo azul e cheio de estradas de nuvem. E na minha frente podia se ver uma dessas estradas de nuvem com uma bicicleta ao fim dela, e ao meu lado um guarda-chuva estranho que tinha um encaixe perfeito para se colocar na bicicleta. A minha vontade de subir naquela bicicleta era tão grande que seria capaz de tentar correr e andar por aquelas nuvens! Foi então que eu entendi o porquê da chuva de pessoas e o porquê dos chinelos velhos. Eu então abri a porta e lembrei-me da frase: “Amarelo, calce os chinelos!”, e peguei os chinelos velhos, que ao passar pela porta se transformaram em um par de sandálias douradas! Eram chinelos mágicos. Eu então, com receio, pisei na nuvem, olhei pra baixo e via mais pessoas cometendo o mesmo erro de correr pela estrada de nuvem sem calçar os chinelos mágicos e acabar caindo no infinito céu azul. Fui andando e me protegendo com o estranho guarda chuva xadrez, e ele realmente protegia, não fui atingido por nenhuma gota de chuva humana. Quando cheguei à bicicleta, fiquei observando como ela era grande e desajeitada. Ela era roxa, com um design bem diferente, ela era toda torta e seu assento era um colchão fofo em formato de coelho. Eu a achei muito estranha, porém, confortável. Sentei nela e parti sem rumo na estrada de nuvem, não tinha muito que fazer lá, mesmo assim, continuei a pedalar. Foi então que encontrei uma velha, ela aparentava ter seus 90 anos de idade, estava no fim de sua vida acreditara eu. Eu passei perto dela, e com um aceno me chamou. Ela então me entregou uma chave negra velha, disse que só poderia usa-la quando ela se tornasse branca e limpa, e que aquela chave era minha única saída. Eu nem liguei muito, ela era velha e não sabia mais o que falava. Com um curto sorriso ela me deu as costas e desapareceu no horizonte com sua bicicleta roxa. Eu não entendera muito bem o que ela me dissera, mais aquelas palavras me assustaram. Eu então dei meia volta e pedalei em direção à porta amarela que eu entrara. Larguei minha bicicleta no mesmo lugar onde eu a peguei, calcei meu tênis e saí da sala de porta amarela. Quando saí os chinelos novamente ficaram velhos e sujos, e a porta se fechara sozinha. Eu tentei abri-la novamente para pegar minha blusa que ficou no cesto da bicicleta roxa, mas não consegui, a porta se trancara. Eu desapontado desisti, e fui ver o que tinham nas outras salas, afinal, que aventuras poderiam me esperar ao atravessar aquelas portas mágicas? Era o que eu queria descobrir. Eu então novamente tapei meus olhos e com uma das mãos apontei para outra porta, a escolhida foi a Vermelha. Das três portas a Vermelha era a que tinha a maior frase: “Vermelho, não ouça o conselho nem olhe para o espelho, siga os seus joelhos!”... Eu tentara descobrir o que poderia significar aquilo, não tinha sentido, na verdade, nada naquela casa tinha sentido. Eu então abri a porta e entrei na sala. Aquela sala era sem graça. De Inicio não enxerguei nada, não virá nada, apenas uma imensidão negra e sombria. De repente, ouvi uma voz, não entendi o que ela falava, não estava na minha língua. E, junto com essas vozes estranhas em vários idiomas surgiu-se um corredor de espelhos, e então meus joelhos começaram a coçar. As vozes e os espelhos não paravam de aparecer, o que deixava minha cabeça mais confusa, eu não estava conseguindo nem ouvir os meus próprios pensamentos! Foi então que eu me lembrei da frase, e ignorei os espelho e as vozes, segui apenas os meus joelhos, mas, a minha vontade de olhar para o espelho fora maior, e eu então olhei... Quisera eu nunca ter feito isso, no momento em que olhei o para o espelho uma estranha menina com olhos negros, a pele amarelada e um vestido coberto de lama saiu de dentro dele e furou meus olhos! Eu ficara cego! Não estava acreditando no que estava acontecendo. Fiquei sem rumo, sem saber o que fazer. Eu com as mãos nos olhos saí correndo em direção nenhuma, me perdi dentro daquela sala macabra, onde se ouvia gritos, choro, risadas... Eu sentia meus joelhos coçando ainda, e a cada passo que eu dava aquela coceira era mais intensa, mais forte. Foi então que num rápido deslize eu caí porta afora, estava novamente diante das três portas, e minha visão voltara. Eu fiquei me recuperando do que acontecera na sala de porta vermelha, não entendera o que se passou lá dentro, mas sei que aprendi a lição. Eu então dei as costas para as três portas e desci a escada rumo à porta. No momento em que eu girei o trinco da porta percebi que ela estava fechada, ou seja, estava trancado dentro daquela casa. Droga. Não aguentava mais tanta loucura, não queria mais ver pessoas caindo como gotas de chuva, nem entrar em salas macabras e escuras e ter meus olhos furados novamente, que queria ir para a minha casa! Foi então que eu ouvi um som, um som de uma harpa. Eu entrei na sala sem TV, e me sentei na cadeira que ficava de frente para a harpa. Fiquei olhando suas cordas tocando uma melodia doce e suave, suas cordas de ouro se moviam sozinhas, dando vida àquele belo som, era uma harpa mágica com formato de um rosto de mulher. Foi então que a harpa começou a falar. Ela me fez muitas perguntas, me perguntou o porquê de eu estar tão aflito. Ela me disse que muitas pessoas já passaram por aquelas mesmas portas, mas que nunca conseguiram sair de lá, acabavam sempre se perdendo ou ignorando as frases, alguns até saíram da primeira porta, mais ficavam presos na segunda porta quando perdiam a visão. Ela então me disse que eu fora o único a conseguir passar pelas duas portas, mesmo tendo deixado meu casaco e minha bolsa dentro das salas, tinha conseguido me livrar de lá! Ela então me perguntou se eu pegara a chave, eu disse que estava no meu bolso e que não saberia quando iria usar, pois ela ainda estava negra. A harpa falou que ela só se tornaria branca no momento em que eu conseguisse passar pela última porta, a porta Azul. Eu falei que estava com medo, e que não queria mais me arriscar. A harpa então me disse que tinha algo que poderia me ajudar, ela me entregou uma lâmpada, igual a essas de casa. Eu dei risada e perguntei como aquilo poderia me ajudar, ela então me disse: “no momento em que a memoria falhar, a lâmpada irá brilhar”. Não entendendo muito bem a frase peguei a lâmpada e segui até a porta Azul. Fiquei de frente para ela, respirei fundo, e pensei positivo, afinal, era o último desafio a ser vencido. Eu abri a porta e adentrei a sala. Nessa sala existiam muitas estradas, e em cada uma delas tinha uma placa escrita “Sul”. Eu fiquei paralisado e pensando: “como assim?”, sendo que a instrução da sala era para seguir ao Sul, e agora todos os lugares indicavam a mesma direção. O que eu iria fazer? Que estrada pegar? Foi então que eu me lembrei da lâmpada, da bússola que eu havia ganhado da harpa. Eu me aproximei de cada estrada, de cada placa, e nada da lâmpada brilhar. Meu esforço foi em vão. Quando eu parei pra descansar um momento, a lâmpada se acendeu, era aquela estrada! Eu rapidamente segui por ela, queria passar por aquele último desafio o mais rápido possível. Eu seguia correndo com todas as minhas forças para chegar ao fim daquela estrada, afinal, só assim eu poderia chegar ao fim dessa estranha aventura. Quisera eu que fosse assim. Quando finalmente cheguei ao fim dela eu vi uma porta, e para o meu desespero, era uma porta vermelha, igual a que eu já tivera entrado. Eu não sabia o que fazer, fiquei confuso. Será que eu estava no caminho certo? Foi então que a lâmpada começou a brilhar, indicando que aquela mesma porta vermelha era o caminho certo a ser seguido, eu com muito medo entrei, e para o meu temor, era a mesma porta que eu já tivera entrado. Era tudo igual, escura, com espelhos e vozes e meus joelhos coçavam. Bem, ao menos que já sabia o que fazer: seguir os meus joelhos, ignorar os conselhos e não olhar para os espelhos! Seguindo então essas regras andei sem rumo no escuro e com os olhos fechados. Percebi então uma luz, era a lâmpada que brilhava. Ela me guiou até outra porta, de cor amarela, a mesma porta que eu já entrara. Entrei sem pensar muito, coloquei os chinelos, peguei o guarda chuva e segui em direção à bicicleta. E eu estava novamente pedalando aquela bicicleta roxa e estranha por entre as estradas de nuvem. Eu pedalava na esperança de que a lâmpada me mostrasse o caminho a ser seguido, mas nada acontecia. De repente eu encontrei uma pequena menina, aparentava ter uns dez ou nove anos, estava com um vestido com estampas que eu nunca tivera visto antes, era uma criança bonita. Eu me aproximei dela e ela assustada olhou para mim e me perguntou como eu consegui chegar até ali. Eu contei tudo o que passei até parar novamente nessa sala com nuvens. Ela ficou só escutando, e tapando minha boca com sua delicada mão e me perguntou onde estava a chave que eu tivera ganhado, eu mostrei para ela, e para minha surpresa ela estava branca, ou seja, eu já podia sair daquele lugar, daquela casa. A menina então desesperadamente me disse para esconder aquela chave, ou então ninguém sairia de lá. Foi então que tudo começou a tremer, como se fosse um grande terremoto. A pequena menina disse então que já tinha começado. Eu sem saber do que ela estava falando perguntei o que estava acontecendo e o que tinha começado. Ela olhou nos meus olhos e disse: “no momento em que o escolhido tiver a chave em mãos, iniciará a destruição!”. Eu me espantei e disse para ela como faria para sair dali, ela deu risada e olhou para a lâmpada, e para a minha surpresa ela estava brilhando. Eu então subi na bicicleta e perguntei se ela viria junto comigo, ela disse que não, pois assim como tudo que existia ali, ela também fazia parte da casa e que seria destruída junto com ela. Eu então dei as costas e segui em direção à outra porta. Quando finalmente cheguei à porta, o cenário atrás de mim já estava se destruindo, eu podia ver uma grande fumaça cheia de cores engolindo toda paisagem azul e com estradas de nuvem. Eu rapidamente coloquei a chave na porta, e para o meu desespero a nuvem colorida estava perto de mim! Quando pensei que seria engolido por aquela nuvem macabra eu consegui abrir a porta e sair daquela casa! Quando me dei conta estava novamente na frente da casa, minha blusa e minha mochila que eu deixara no cesto da bicicleta roxa, estavam no chão bem ao meu lado. De repente ouvi alguém chamando pelo meu nome, era meu amigo trazendo em mãos uma estranha chave branca, que segundo ele eu deixara na escola. Ele me perguntou de onde era aquela chave, eu olhei para ele e disse que era a chave de saída daquela casa, ele deu altas gargalhadas e me perguntou se eu não queria entrar com ele na casa, eu com um sorriso lhe disse: “é uma casa sem dono, sem portão, sem cachorro, é uma casa sem graça, num dia sem graça, numa cidade sem graça.”Ele deu risada e com a chave branca em mãos entrou na casa, eu apenas coloquei a mochila nas costas e segui rumo a minha bela casa no alto do vilarejo.
Autor: Rangel Amon