Elena
Havia vinho nas veias e havia luzes nos olhos de vale de Elena. Escassas, inconstantes e fracas, mas luzes. E pomos de discórdia eram os enfeites do cabelo de Elena, enfeites dados por Éris, e cada gema em seus dedos era um fruto de tudo que sofre e se arrasta. Gemas de sangue, coágulos do que já não flui, do estático e morto nos vasos, do que já não pulsa; Elena está morta e tem em si apenas ímpeto. A vã luta por algo que nunca ninguém possuirá, nem Elena. Nem mesmo ela, Elena. E, mesmo assim, preparava-se para vê-lo. Perfumes, pratas. O único problema era que, por mais que se esfregasse e se lavasse, havia ainda um persistente e sutil cheiro de podridão que da pele de Elena desprendia-se. Não se mascara a morte. Ainda assim, Elena não deixava apagar o ímpeto.
Elena sairia de casa íntegra. Completa. Seria grande e causaria invejas com seu vestido de pratas e com seus enfeites de Éris. Preparara-se para ser desejada e, se o fosse, entregar-se-ia inteira a ele. Entregar-se-ia e renasceria, todo o ímpeto posto para fora, todo o ímpeto vomitado no piso feito a visão materializada do dentro de Elena. Ele se interessaria por uma Elena nova, por uma Elena refeita e (morta) restaurada, era certo.
Então, Elena deixou a casa. Em saltos altíssimos cor de fim-de-tarde, andou, frenética, pelas calçadas de pedra azul e de estrelas, repassando como seria a noite. Uma noite toda de olhares. De realização e solidez. Elena tornou-se, no caminho para a festa, um todo radiante e cordato. A própria Éris a ajudara com certezas e adornos. Uma noite toda de olhares, uma noite toda de Elena e do outro. Éris prometera que não haveria mais cheiro podre saindo dos poros de Elena, Éris prometera. Havia, sim, a promessa de vida após o primeiro fogo de sol que incendiasse o pasto, após a hora azul matinal. Havia a promessa de suor sob o sol, de suor e de ardência, de união com a terra e com tudo que existe. E Elena adentrou o salão.
Uma noite toda sem um olhar.
Elena já alta, em prantos. Uma noite toda sem um olhar. Uma noite toda de Elena fechando-se cada vez mais, por vezes de olhos fechados, na esperança de sentir alguma mão de apoio, alguma mão dele, em seus ombros. Ele não veio. Ele não viria. Cada estridente batida do coração de Elena, em arritmia, marcava o tempo e acentuava a percepção terrível de que ele não viria. Uma noite toda sem um olhar. Uma noite toda com apenas duas palavras, apenas um Olá, Elena, apenas cumprimentos superficiais e contidos. Elena tinha em si aquele ímpeto tão latente, aquela chama insustentável lambendo suas carnes, queimando, fogo, fumaça, dor, carne viva, sangue fervente, pele borbulhando e derretendo, os cabelos e os pomos de discórdia engolidos pelo fogo e Elena olhava e olhava e olhava e controlava-se enquanto via que ele dançava longe, que ele não sentia o cheiro de carne queimada ou o cheiro de fumaça. Elena não se movia, estava colada à cadeira, alta, dilacerada.
Ele, longe, sequer olhava. Ele, longe, sequer sabia que existia uma Elena em convulsão num dos cantos. Se sabia, não se importava, fingia, dissimulava, melhor evitá-la que logo some, como se Elena fosse algo que pode ser escondido numa gaveta de desordem ou sob o tapete.
Então, a mulher de pratas no vestido e pomos nos cabelos deixou a cadeira, em fúria. Cruzou o salão até ele. Parada, prostrada, apenas olhou.
Olhou profundo nos olhos dele, incrédula, enganada, nascera para o engano, para a ilusão. Elena, desprovida de equilíbrios, metida num ímpeto, ímpeto incontível. Ele a tomara e agora morrera o desejo, mas e a virilidade, e a fome que te afogueava quando entravas em minha boca? Estes teus olhos me olham e não me olham e não veem, estou perdida dentro de ti e de mim, peço por teu olhar. Estou tomada por uma agonia que me suga a vitalidade; tornou-se difícil existir. Desejar-te é um peso que me afunda um peso um peso um
Mas ele não sabia. Não saberia. Quem era mesmo Elena?, uma coisa de julho, de passar o tempo. Coisa de meses atrás.
Filete de mar dos olhos à boca e Elena penetrou-se naquele limbo que é o interstício entre o existir sólida e o existir fluida, e perdeu-se num êxtase de fogo, ânsia de vastidão, nesga de céu em mente, nesga de luz de dezembro, da lua sobre o lago, alagada, lânguidamarela e sonora em seu silêncio cegante.
Restou a Elena correr, a esperança de fugir de si, de perder-se de si em meio ao mato de fora do salão. O mato é vivo e dançam as árvores tão eternas que não há pressa, uma existência pesada e pouco sutil, um relance de tudo em aura de silêncio alto e ritualístico. Dançam as vidas e vidinhas nos galhos e na umidade, embriagadas de tanto horror diante das alturas imóveis. Pavor eterno — que é a duração de um ser. Brevidade é fardo aos breves, mas não aos infinitos. E Elena sentia-se infinita. Inegavelmente morta, mas infinita em seu ímpeto, em sua força norteadora, em seu desejo; infinita no homem e enfiada naqueles olhos grandes e fundos.
Queria ser breve. Queria terminar-se, consumir-se, juntar-se ao mato em frente ao salão de festas. Gostaria de acabar-se ali mesmo, na hora azul que prenuncia o sol. Elena queria que sua consciência retornasse à consciência do Universo e das vidas, queria que seu ímpeto fosse convertido em vento e que seu pranto se tornasse o alimento do mato. Queria tornar-se húmus. Queria ser lentamente decomposta.
Elena, em fúria, jogou-se. Caiu na grama, o vestido de pratas rasgando-se, os pomos do cabelo caindo e perdendo-se em meio às ervas pulsantes de vida, as gemas de seus dedos descolando-se dos anéis. Alucinada, passou a arrancar tufos de mato do chão, tufos verdes e tufos secos, tufos e seus insetos, tufos e suas raízes com terra, passou a arrancar tufos e passou a socá-los na boca e a gritar, passou a devorar a grama como uma cabra furiosa, desorientada, voraz. Comia as ervas, comia a terra e os insetos, comia para morrer. Comia e se arranhava com as unhas rosa que pintara pela manhã, e quando as pintara ainda tinha discernimento e ainda tinha a esperança de receber o olhar dele. Machucada, afogueada, vermelha, com grama no estômago, terra entre os dentes, meio nua sob o primeiro fogo de sol que incendiava o pasto, ainda sentindo os vapores de álcool, levemente alta.
Permaneceu no chão até que o dia despontou por completo. Os rumores das despedidas, do fim da festa, enchiam o ar, mas Elena não ouvia. Elena estava num estado transcendental, sentia-se repleta de siso e envolta num calor que emanava de dentro de si. A terra e o mato voltavam à boca em refluxos ácidos e Elena não se movia para contê-los ou para expelir a massa densa. Aos poucos, afogava-se. Mas sentia-se bem, plena e muito viva.