Sonho 1
Eu já ia dormir, mas de novo lembrei daquela pérola do Raul: "Enquanto Freud explica as coisas, o Diabo fica dando os toques". Daí, inevitavelmente, me veio o Pessoa com as suas compensações de uma alma não apequenada, e eu logo pensei que podia tudo, inclusive declarar que não sou chegado ao Chiclete com Banana ali, veja só, no epicentro do Sangalismo. Corri para a geladeira, - valha-me, Deus! - aquela heresia deveria ser curada com uma porção generosa de carboidrato, mas o microondas deu pau, o gás abriu-se, não, vazou, ah, não, não havia gás, insolvência, essas conjecturas capitalistas...
Quando eu já estava no Salve Rainha, mordiscando aquele pedaço de queijo ressequido e esbranquiçado que, a marretadas, consegui separar da massa insossa e gélida que se formava no canto esquerdo superior do congelador, lembrei que se eu lesse em voz alta o Pequeno Príncipe, poderia depois ir para a cama sem perdas e danos, podendo até ter a sorte de sonhar com a Rainha dos baixinhos nuinha e cantando só para mim aquele hit do Ilarilariê; faz tempo, eu dormi com a Vanderléa, cantando "Pare agora, senhor juiz" - no sonho, eu era o juiz que não queria parar.
Saí da cozinha determinado a não me atrever a sequer olhar para a imagem do "Che" na sala, - isso costumava ser fatal, olhar a foto do Che me provocava uma abstenção de Coca - Cola, o Imperialismo Yankee me fazia revirar os olhos e eu só me acalmava com Miguelitos e Coquetéis Molotov jogados a esmo em alguma propriedade privada.
No corredor, deparei com o quadro "O Grito" do norueguês Edvard Munch, era eu gritando, mas consegui fazer um "plec" com os dedos, e ouvi então uma voz que veio lá de dentro de mim que disse: estátua! o quadro considerou a sua condição de quadro apenas, e eu pude evoluir adentrando o meu quarto. Fechei os olhos por precaução, apesar de não adiantar, pois o Renato já vinha "dando a ideia", sussurrando no meu ouvido "não tenho medo do escuro, mas deixem as luzes acesas!".
Daquele momento em diante custei a pegar no sono, pois todos os ícones da minha geração estavam ali, de alguma forma presentes: pra todo canto que eu olhava, via a Janis Joplin vestida com aquelas calças Lee americanas irresistíveis cruzando as pernas de uma forma que... não, não! Era a Sharon Stone, selvagemente, atiçando a minha libido. Renato não era mais o Russo, agora estava acompanhado dos Blue Caps; o Jards Macalé uniformizado de General de Exército ditava o tom: subversão, nunca mais! O Newton Cruz, aproveitando o clima foi logo entrando sorridente e me trazendo como mimo uma caixa vermelha repleta de exemplares do Pasquim. Mas... peraí... isso aqui está infestado de ácaros e... atchim! atchim! atchim...
... droga! - acordei contrariado - eu havia deixado novamente a janela aberta. com essa chuva!...