O HOMEM DO TERNO BRANCO

Nehemias era um rapaz do tipo considerado “normal” pelas pessoas da família, do bairro, do trabalho e, de tantos quantos o conheciam. Nascido em família temente a Deus, foi criado nos critérios da sua denominação religiosa e tinha rotina fixa no vaivém de casa para o trabalho, do trabalho para a igreja e vice-versa. Não perdia a oportunidade de estar nos cultos com os irmãos de fé.

Sua igreja ficava localizada há uma quadra da casa em que morava e, cerca de uns duzentos metros de distância funcionava um “terreiro”, também atrativo para um considerável número de frequentadores. Até mesmo carros de gente rica eram fáceis de serem vistos nas imediações, nas noites de atividade.

Nehemias não tinha a menor ideia do que se passava durante as sessões, mas tinha sido prevenido, pelo seu pastor, de que ali era lugar onde prestavam culto ao capeta e que tudo o que faziam não passava de “macumbaria”. Por isso mesmo, em todas as reuniões da igreja, no finalzinho, costumavam fazer orações para tentar salvar as almas dos frequentadores daquele lugar ofensivo a Deus.

O rapaz, a respeito de todos os predicados não tinha um afeiçoamento do tipo que costuma atrair a atenção do sexo oposto. Ao contrário, a cara cheia de cravos e espinhas mais parecia uma folha de lixa grossa... Já do alto dos seus vinte e cinco anos nunca havia experimentado o aconchego de um corpo de mulher, por isso conservava a virgindade o que era profundamente exaltado no âmbito congregacional.

Mas, o que Nehemias tinha de casto, tinha de curioso e, por mais que a virtude o detivesse não se continha de vontade de, um dia, ir verificar, in loco, que diabo era essa macumbaria da qual o pastor, vociferando, tanto falava.

Um outro sonho de Nehemias era, um dia poder usar um terno branco que um seu chefe, no trabalho, lhe havia dado. O homem era comandante aposentado da Marinha Mercante e possuía, no guarda roupas, algumas fardas e ternos que já não lhe cabiam mais e resolvera desfazer-se de alguns deles.

Depois de aposentado, o comandante, para não ficar ocioso, resolveu montar uma pequena empresa para a venda de produtos de marinharia. Negociava cartas náuticas, livros de bordo, sextantes, lunetas, binóculos, réguas e outros itens da instrumentação específica.

Na verdade, embora se identificasse como “comandante aposentado”, ninguém o conhecera antes de ser estabelecido no bairro e, nunca ninguém constatou a veracidade do trabalho exercido nos tempos da “ativa”.

Como em todo lugar sempre há um espírito de porco e como o comandante, solteirão inveterado, era bem abastecido pelo mulherio, um sujeito invejoso andava espalhando que o vizinho não passava de um “clone” do tal Vasco Moscoso de Aragão, aquele impostor que se apresentava como “Capitão de Longo Curso”, no romance de Jorge Amado, “Velhos Marinheiros”.

O homem lhe dera o traje que coube direitinho no seu corpo. Porém, como não tinha aonde ir com aquele terno branco, mantinha-o guardado no armário, juntamente com algumas poucas peças, também sem ou com pouco uso.

Uma noite, bem no meio do culto, ninguém soube dizer o porquê do destempero, o pastor, possesso, desceu a ripa no tal centro de macumbaria.

Para lá de irado centrou seu falatório num tal de “Zé Pelintra”, um sujeito que baixava lá pelo terreiro usando um terno branco, uma gravata vermelha e um chapéu, também branco, de palha. Como era possível uma coisa dessas? Uma verdadeira afronta à Casa do Senhor e ao povo de Deus?

Uma vez, ouviu, na padaria, alguém comentando a respeito do “Seu Zé”, um sujeito que baixava lá no terreiro, que dava muitos conselhos para os consulentes e, ainda por cima, tinha uma sorte danada com o mulherio que frequentava a casa.

Aquilo parece que teria sido o estopim para acionar tudo o que havia represado no interior de Nehemias. Afinal, quem vai lá saber o que se passa nos miolos de alguém? O fato é que o rapaz, naquele mesmo instante, decidiu que iria, na noite seguinte, faltar ao culto da igreja para verificar o que acontecia lá dentro do tal terreiro. Queria ver esse “Seu Zé Pelintra” de perto, com o seu terno branco, cercado de mulheres.

No dia seguinte, ao sair do trabalho, passou num camelô, daqueles que costumam fazer ponto na Quadra Central, e escolheu uma gravata vermelha. Em outra banquinha mais adiante, que vendia bonés e chapéus, comprou um imitando palha, também de cor branca.

À noite, Nehemias esperou que um bom número de fiéis já estivessem no interior do terreiro e, como quem já conhecesse o ambiente, tratou de misturar-se com os demais. Ocupou um lugar vago e permaneceu ali, sentado, atento a tudo o que acontecia.

A sessão começou com uma cantoria entoada por mulheres vestidas de baianas e homens, também de roupas brancas que eram seguidos pela assistência. Pouco a pouco, as “entidades” iam baixando e desempenhando os seus papéis.

Em pouco tempo as personagens estavam em franco trabalho. Pretos velhos, caboclos, marinheiros, crianças e até mesmo, dois exus. Dava para sentir a mistura dos cheiros de charuto, cachimbo e cachaça...

Foi aí que um novo canto foi entoado e, um moreno vestindo um alinhado terno branco, de gravata vermelha e chapéu ingressou no recinto.

O silêncio geral acentuava a imponência da entidade que esquadrinhava, com postura altiva, os quatro cantos do terreiro, dando azo a que os fiéis se aproximassem para as consultas.

Ao concluir a terceira entrevista, Seu Zé olhou para o lugar onde se encontrava Nehemias e, apontando-lhe o indicador, disse em tom grave: Quero falar com você”!

Ato contínuo, dois cambonos, também de branco, seguraram, levemente o visitante, pelos braços, e o conduziram até o local em que estava a entidade solicitante.

Nehemias, atônito, diante daquela experiência inusitada e, até mesmo com uma certa dose de medo, lembrava-se das palavras do pastor e imaginava o que poderia fazer para sair correndo dali, já que estava diante do capeta, em pessoa?

Não teve tempo de esboçar qualquer reação. “Seu Zé”, percebendo a aflição do pobre, foi logo desembuchando:

Meu filho! Sei que você tem receio do que se passa aqui dentro. Mas vou lhe mostrar que será beneficiado e só vai ter boas lembranças daqui. Amanhã, à noite, por volta das dez horas, vista o seu terno branco, coloque sua gravata vermelha e o seu chapéu. Depois, fique esperando aguardando no ponto de ônibus que fica bem em frente ao “Restaurante Comunitário”, ali em Sobradinho II. Você terá uma surpresa.

Sem dizer nada, Nehemias agradeceu, despediu-se e foi embora para casa. Ao sair pelo portão, desatou uma disparada e só parou a correria quando chegou em casa. Com a cabeça em turbilhão, custou a pegar no sono. Finalmente, com muito custo, dormiu.

Na noite seguinte, conforme o combinado, às vinte e duas horas, lá estava Nehemias, de terno branco, com gravata vermelha e chapéu, olhando para o relógio, aguardando sem saber o quê, no ponto do ônibus. Diante dele, na parede do prédio, a inscrição: “Restaurante Comunitário – GDF”.

De repente, a impaciência deu lugar a uma surpresa tamanha que quase fez o pobre perder a respiração. Aos poucos, pode divisar a imagem de um corpo feminino que vinha andando em sua direção. Sem ter muita certeza, pensou:

Quem será aquela moça? Será que vem esperar ônibus ou vai passar direto?

Segundos após, estava diante dele uma mulher deslumbrante. Rosto, corpo e tudo que podia ser de belo estava ali naquela figura. A estupefação tomou conta quando ouviu a pergunta:

-- Oi! Demorei muito? Faz tempo que está me esperando? Você é o Nehemias, não é? Está um pedaço de mau caminho com esse terno branco e essa gravata vermelha!

-- Sim, sou eu! Cheguei faz pouco tempo! Não pensei que fosse encontrar uma pessoa tão bonita assim!

-- Está gostando do que vê? Perguntou, exibindo-se com trejeitos sensuais insinuantes.

Nehemias, antes de responder, com o coração aos pulos, lembrou-se da promessa do “Seu Zé, lá no terreiro, e pensou: Puxa, qual o pastor que ia me arranjar uma beleza dessas? Aquela turma está mais por fora do que umbigo de vedete! Vou nessa!

-- Puxa, você é linda demais! E como está chique com essa blusa branca e saia vermelha!

-- É que estamos dando uma festa lá em casa e fui orientada, pelo “Zé”, no sentido de vir buscá-lo aqui. Como devemos começar daqui a pouco, resolvi já vir vestida. Afinal, não ficaria bem acompanhar um moreno como você, assim, nessa estica, com roupas inadequadas. Então? Vamos andando? Ato contínuo, a moça pegou a mão de Nehemias e os dois saíram caminhando, pela Avenida, em direção a Sobradinho II.

A cabeça do rapaz girava a mil, imaginando o mundão de delícias que teria com aquela mulher de fazer inveja a qualquer mortal. Estava começando nova fase na vida e queria esquecer todo um passado de carências e de repressões. Afinal, tinha direito a ser feliz e o “Seu Zé”, ao contrário do que falavam, era o que podia se dizer, “uma boa praça”!

No meio do caminho, sorridente e entusiasmado, Nehemias perguntou à moça:

-- Já estamos conversando há algum tempo e ainda não sei o seu nome! Como você chama?

Sorridente e insinuante, a moça respondeu:

-- Maria Padilha! Para você, meu bem, é só Maria, está bem? Olhe! Estamos quase chegando em casa! Acho que o pessoal já está animado! Vamos?

No dia seguinte, o administrador do cemitério, ao dirigir-se para a portaria, deu de cara com um sujeito vestindo terno branco, gravata vermelha e um chapéu de palha. Estava caído ao lado de uma sepultura, lívido, quase sem respiração.

Incomodado com o transtorno extemporâneo, ligou para a UPA que ficava bem nas proximidades do cemitério e chamou a ambulância do SAMU. Não entendia como um homem bem apessoado como aquele teria ido parar ali, bem na álea principal, principalmente antes do início do expediente.

Soube, depois, que o homem, um grã-fino, estava internado no Hospital Regional, em estado de choque. Sentado, ao lado, um investigador aguardava para tomar as primeiras notas sobre a ocorrência. Tinha ordens para abrir um inquérito policial.

O Delegado era o mesmo pastor da igreja da vítima e esse era o segundo caso na sua jurisdição. Por isso o destempero daquela reunião anterior lá na igreja que Nehemias frequentava. À noite, no culto, soltaria o verbo, novamente, maldizendo a macumbaria que havia se corporificado na ocorrência registrada, na Delegacia, envolvendo o irmão Nehemias que se descuidara dos ensinamentos da Igreja e alertando os irmãos a respeito de uma tal de Maria Padilha que levava para o cemitério, homens vestidos de terno branco e gravata vermelha.

Amelius – 01/12/2013 – 19:50

Sobradinho-DF

Amelius
Enviado por Amelius em 01/12/2013
Reeditado em 10/07/2020
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