X (capítulo I)

Na obscura e fria noite de Tenebron é sempre comum a atividade criminosa. Nem mesmo a densa névoa que cobre os mais altos arranha-céus impede que qualquer um vislumbre tal onda de roubos e, inclusive, assassinatos. Mas tudo não passa de uma faixada para o verdadeiro crime que acontece na grande metrópole. Empresários e políticos corruptos por ganância, agindo de forma sorrateira e apagando as suas pegadas, não que isso seja necessário, já que todos dão olhos somente às atrocidades cometidas diariamente nos becos e alamedas da cidade. Ninguém sabe. Ninguém sequer desconfia. Ninguém, além de uma figura curiosa.

Coberto por um manto marrom, sujo e rasgado, com um pequeno barbante branco amarrado pouco abaixo de uma face coberta por trevas, escondida por um capuz improvisado e uma escuridão quase que inexplicável. Só mais um vulto na imensa multidão apressada, voltando para as suas casas, correndo e rezando para não ser mais uma vítima da violência sem sentido que existe na cidade.

O mais sinistro dos vultos - nosso protagonista - se direciona aos fundos de um prédio - uma empresa multinacional - de cujos fundos cresceram inexplicavelmente nos últimos dois anos. O prédio é imenso, cercado por grandes muros. Nos fundos se encontra a entrada para uma garagem subterrânea, guardada por um guarda gordo e sonolento. Nosso protagonista atravessa a rua calmamente.

- Posso ajudá-lo, senhor? - pergunta o guarda, como se tivesse acordado repentinamente, assustado com a figura que lhe surgira. Nada lhe é respondido. O protagonista continua andando. Está se aproximando da cancela que bloqueia a passagem para a garagem. - S...Senhor?! - indaga o guarda, incrédulo de que aquela pessoa (ou seja lá o que fosse) não o ouvira. - Senhor? - reclama o guarda uma última vez, com uma voz dessa vez firme.

O protagonista para.

O guarda sua frio. Engole lentamente uma porção de saliva e continua: - Como posso ajudá-lo, senhor?

O protagonista vira o rosto lentamente em direção ao guarda. Uma imagem sinistra, aterrorizante. O guarda transpira cada vez mais, sentindo cada gota de suor percorrendo seu gordo e enrugado rosto. Sentiu falta da mulher e dos dois filhos, da mãe que falecera no ano passado, do pai com o qual brigou por dinheiro. Sentiu-se culpado, aterrorizado, morto. Tudo ao mesmo tempo. “Como isso poderia acontecer?” pensou. O homem era rígido com as crianças, exigente com a mulher e intolerante com o erro dos outros. Foram poucas as vezes que ele tenha demonstrado amor à sua família. Tristeza. Saudade. Medo. Uma sensação indescritível. O velho se senta mais relaxado, fecha os olhos e dorme. Nosso protagonista tem o caminho livre.

O protagonista passa ao lado da cancela e segue um curto caminho até a entrada da garagem subterrânea. É um lugar escuro, perfeito para que um crime ocorra, mas não é o que ele planeja. Ele vai seguindo seu caminho silenciosamente até o elevador, até esbarrar em uma mulher, ocupada procurando algo em sua bolsa. - Oh, me desculpe senhor... - a mulher se pronuncia, até levantar a cabeça e perceber quem era. - ah, é você, Rafael. O que faz aqui essa hora? - ela pergunta, fechando a bolsa. O protagonista fica quieto, encarando a mulher. - Rafael? - indaga a mulher confusa com a situação. Ele olha para frente e segue rumo ao elevador, deixando a mulher sozinha e sem qualquer resposta.

O elevador desce e, para sua sorte, está vazio. Quase todos os funcionários já saíram devido ao horário, foi uma subida sem paradas até o último andar. As portas se abrem e dão passagem a um longo corredor que leva à sala do chefe. Lenta e calmamente, o protagonista caminha rumo à entrada da sala. Ele abre a porta e encontra o chefe da empresa sentado do outro lado da mesa, lendo um jornal.

- Muito bem, Daniel. - diz o gordo levantando e tirando os óculos. Ele põe uma maleta sobre a mesa e diz: - Aqui está a sua parte... Nunca mais ouse entrar aqui.

O protagonista tira um de seus braços do manto que cobre quase que seu corpo inteiro, pega a maleta e se dirige de volta ao elevador. Às suas costas, o chefe da empresa se senta, coloca os óculos e volta a ler.

Tudo está quieto no prédio, os últimos funcionários estão saindo e não há nada no caminho do protagonista. Como não queria se arriscar, saiu pela garagem subterrânea. A sombria névoa havia desaparecido, revelando as ruas vazias daquela noite.

O chefe da empresa, ainda em sua sala, se irrita ao ver que Daniel estava voltando. - Não te falei para não voltar mais aqui?! O que quer? - Daniel, enfurecido, exclama: - Já se esqueceu, velhote? Eu vim aqui pra pegar o que você me deve, pra não manchar mais o nome da sua família. - Não brinque comigo, moleque! - Exclama o chefe. - Você sabe que acabou de sair com o dinheiro! - O quê? - Questiona Daniel, até ser interrompido por uma chamada no telefone da sala.

O chefe atende. - Sim? - O silêncio toma conta da sala.

“Quebra de segurança”.

Vários guardas saem correndo pelo portão da frente da empresa, correndo e se dividindo pela cidade. O chefe, na sala de segurança, assistia as imagens da criatura encapuzada andando pelo prédio de cabeça baixa, sem ser interrompido. - Mas... eu... eu juro que vi... Vocês precisam encontrar esse bastardo! Imaginem o que mais ele pode saber da nossa empresa!

Nosso protagonista, ainda com a maleta, anda calmamente pelas ruas, até ouvir um grito a distância:

- Corram, ele não deve estar muito longe!

O protagonista começa a correr na direção contrária do grito. As ruas estão vazias, iluminadas apenas por poucos postes de luz. Ele se depara com um guarda numa esquina, dá meia volta e volta a correr, agora na direção contrária e sendo perseguido pelo guarda. Ao chegar à outra esquina, se depara encurralado por quatro guardas.

Tudo escurece.

O protagonista acorda amarrado a uma cadeira, numa sala sem janelas e com uma única porta de ferro, até perceber que estava sem capuz.

- Você tem o sono leve, rapaz. - diz o chefe da empresa, em pé pouco a frente do protagonista. - Não há como fugir. Eu tenho o meu dinheiro de volta, mas quero respostas.

- Aonde você me trouxe, velho imbecil? - pergunta o protagonista, enfurecido com sua falha.

O chefe dá um forte soco no rosto do protagonista. - Eu que faço as perguntas aqui! Bem, - o chefe arruma a camisa - como você fez aquilo? Você me drogou?

- Interessante você ter citado. Não foi a sua filha que morreu de overdose no ano passado?

O chefe se prepara para socar o protagonista novamente, mas hesita.

- Como você sabe disso?

- Para quem você trabalha, velhote?!

Enfurecido, o chefe saca uma faca.

- Espere... não foi assim que você matou a sua esposa?

- Não! Aquilo foi... um acidente... - se explica, atormentado por lembranças.

- Você sabe que não. Foi a sangue frio! A sua filha não tinha nem um ano!

O chefe da empresa começa a sentir frio. Infelizmente, para ele, não físico. O frio da solidão. Da culpa. Do desespero. Seus olhos estão amplamente abertos e sua boca tremendo. Ele esquece onde está, o que estava fazendo e até mesmo o perigo que estava passando. “Como pude fazer aquilo com Olívia?” pensava. Pensava na filha, e como seriam suas vidas hoje se ele não tivesse matado Olívia. Sentiu uma dor que não pode ser curada. Um vazio que não pode ser preenchido. Perdeu toda a vontade de viver.

- Eu... eu não queria... - o chefe larga a faca e se ajoelha, começando a chorar.

A faca começa a levitar. “Preciso dele vivo...” pensou o protagonista. Ela se dirige para trás da cadeira e, lentamente, começa a cortar as cordas que prendem o protagonista à cadeira. O protagonista se solta, pega a faca e fica olhando para o chefe da empresa, que está desolado no chão. “Eu preciso saber o que você sabe, mas infelizmente estou muito fraco pra isso...” pensa.

O protagonista decide deixar o chefe da empresa e se direciona a porta. Ao abri-la se depara com dois guardas armados guardando a porta, um de cada lado. - Chefe! Cuidado, o cara tá atrás de você! - grita um guarda apontando a arma para o outro. - É, eu também vejo ele, chefe! - exclama o outro, apontando a arma para o seu companheiro.

- Muito bem, matem-no. - diz o protagonista pouco a frente dos dois, com um sorriso discreto estampado em sua pálida e, novamente, sombria face.

Ouve-se tiros.