A GOZAÇÃO DA JAQUEIRA
Hoje é um domingo atípico, aqui em Brasília. O calendário registra 23 de novembro.
Desde a tarde de ontem e, pela noite toda, choveu a chuva que o dilúvio de Noé não viu. Acidentes, aos montes, pelas rodovias e avenidas, com as sirenes dos bombeiros riscando a cidade desde um lado ao outro da Íbis e mais para além das penas, bico e patas... As tesourinhas, engasgadas, quase sufocavam com o caudal de água que lhes descia pela goela abaixo...
Por isso mesmo, o Eixo-Norte estava todo encharcado e nenhum mortal, dos mais afoitos, se interessou por fazer a ritual caminhada ou o passeio de bicicleta dominical. Mesmo assim, lá para as bandas da Asa Sul, havia uma atividade programada, com um ajuntamento sem tamanho de gente, barracas e pisca-piscas profusos, das “viaturas” policiais.
Era uma pré-anunciada maratona, patrocinada pelo governo e algumas organizações financeiras e comerciais. Um bocado de gente corria curto, envergando camiseta azul, contendo referências às marcas patrocinadoras.
Nesse cenário estava voltando pela W3-Sul, retornando das instalações da LBV, onde deixei minha mulher às voltas com o seu curso de “Tetha-Healing”, quando, pela sinalização emergencial, tive que mudar o rumo, atingindo a W2-Norte.
Quando já estava alcançando quase a metade do percurso, senti meus dois olhos num descompasso estranho e meu cérebro entrando em parafuso. O negócio é que cada um dos olhos estava olhando para um lado e estavam forçando a barra para que eu olhasse para o lado que os dois queriam!
A situação era verdadeiramente insólita, pois meu cérebro, confuso com a briga entre os olhos, ainda tinha que cuidar do razoável, lembrando que eu estava na direção de um veículo, chovendo na pista e, ainda por cima, fiscalizado pelos inúmeros pardais que parecem frutos nos postes da cidade. Os pardais passam a eternidade olhando só para uma coisa, o seu carro e pensando só noutra coisa, o seu bolso.
O motivo da discórdia focal estava bem diante do meu nariz e, como precisava atentar para a frente, relaxei um pouco com a visão periférica. Assim, tomei a decisão de parar o carro e observar, direito, a origem da refrega.
Parei num lugar adequado e saí. Foi aí que os olhos entraram em acordo e pude ver que diabos estavam querendo que eu olhasse. Não preciso dizer que fiquei pasmo com o panorama que se descortinava à minha frente. Com a chuvarada dos últimos dias, o gramado e as árvores de Brasília tomaram a disposição de assumir o seu verdadeiro posto de “Arvores da Capital da República”.
Estavam ostentando uma beleza descomunal. Para começar, o gramado sobre o qual pisavam estava estendido por todo o canto, tal qual um tapete, aparado como cabelo de cadete, verdinho da silva e, ainda brilhando na folhas da grama as inúmeras gotinhas da chuva que caíra na véspera. Parecia um imenso salão de trono real.
Não estou me referindo, aqui, a arvorezinhas ou arbustos. Agora falo de arvores, mesmo. De árvores de verdade. Falo de árvores portentosas, com copas enormes, galhada profusa e folhas incontáveis, responsáveis pelo sombreado amigo que ameniza a insolação dos dias de céu sem nuvens. São tantas que não saberia indicar os nomes de todas elas.
São delicadas gigantes que se oferecem em flores, em cores, em frescor de sombra amiga. São acolhedoras, pródigas e, principalmente, dadivosas, oferecendo seus frutos a quem quiser saboreá-los.
Absorto que estava, tanto com a visão quanto com a pacificação ocular, sacando fotos a esmo, atentei para o momento em que mergulhava em estado de reflexão, numa interação deliciosa com o reino vegetal.
Nesse instante tive minha atenção chamada para um vozerio em baixo volume que estava ouvindo, aparentemente, de todas as direções. Olhando para um lado, olhando para o outro, nada vi ou percebi que pudesse estar dando origem aquele burburinho.
Foi então que senti, no meu ombro direito, bem na imediação da omoplata, um toque tal qual o de um dedo. Alguém poderia estar precisando de alguma coisa ou querendo chamar minha atenção.
Virei-me, ligeiramente, e quase caí de costas. Não podia acreditar naquilo que estava vendo. Se contasse às pessoas, iriam dizer que estava ficando ou já tinha ficado maluco! Ninguém mais, ninguém menos do que uma grande jaqueira, carregadinha de frutos, de cima em baixo, era a figura que havia cutucado a minha omoplata.
Esfreguei os olhos, dei um beliscão na bochecha e dois cascudos no alto da cabeça... Não era sonho, vertigem ou fantasia e eu não bebo nem refrigerante quando estou dirigindo. Era, mesmo, uma árvore que estava à minha frente, com uma das mãos na boca, querendo cair na gargalhada, tal a minha cara de espanto. Mesmo assim, deixava escapar ruídos da graça que estava achando, do meu estupor. Literalmente, a jaqueira estava num surto de gozação! Pode?
Naquele momento, juro que lamentei profundamente não ter a companhia do meu querido mano Viégas, o Inocêncio de Jesus. Acho que só mesmo ele poderia socorrer-me naquela situação, já que é useiro e vezeiro em falar com animais e plantas; fala com galos, passarinhos, cachorro, gato e, se não me falha a memória, até mesmo com uma pulga de estimação que mora junto com o cão matreiro.
Acabrunhado com a gozação da jaqueira, já estava pensando em botar as barbas de molho e ir saindo de fininho, quando ouvi um festival de risadas. Estavam rindo de mim e as risadas estavam vindo de todos os lados que se possa imaginar.
Já estava pensando em soltar o verbo dando uma bronca daquelas quando reparei que, no meio de tanta risada, pude observar que todas aquelas árvores estavam rindo para mim, e não, rindo de mim!
Confesso que fiquei emocionado, num primeiro momento e, envergonhado, logo a seguir. Mas, acho que fingiram não notar e não deram por menos, continuaram a rir, ou melhor, agora estavam todas sorrindo...
Vocês não vão acreditar, mas aquelas árvores todinhas tinham olhos, bocas, narizes, orelhas e as copas, imensas cabeleiras! Não consegui entender e nem tive coragem de perguntar, mas havia algumas delas, parecendo intelectuais ou professoras, que usavam óculos.
Absorto e confuso que estava, com meus pensamentos, tive esse estado interrompido com mais esse fato inusitado:
A tal jaqueira a que me referi no, princípio, dirigiu-se às outras dizendo: Acho que agora já podemos conversar com ele, não acham? As outras, em uníssono, gritaram, batendo palmas: Achamoooooosssss!
Muito bem! Disse a jaqueira.
-- Faz um tempão que estamos esperando algum de vocês para um desabafo. Há muito e muito tempo atrás, as pessoas e as árvores tinham relações de amizade muito estreitas e, em razão disso, passavam horas intermináveis conversando e trocando idéias. Você lembra da história do Pinóquio? Pois é! Isso foi daquele tempo e o Gepetto trabalhou com madeira liberada de um galho velho. Estava caído no chão quando o marceneiro o encontrou! A ideia de construir o boneco, foi da própria árvore, dona do galho! Era um velho pinheiro!
Com o tempo, as ideias foram se transformando e o homem descobriu que o mais importante, na vida, era ganhar dinheiro e fazer fortuna. Para eles o importante é ter muito dinheiro para comprar muitas coisas e, assim, demonstrar que tem poder, alçando posições na sociedade, prestígio, coisas assim...
Essa ideia prosperou e viram que explorando os recursos da natureza poderiam ganhar muito e enriquecer mais rapidamente. Então, desenvolveram vários tipos de mecanismos para avançar sobre nós, vegetais, além dos animais e minerais.
No nosso caso, infligiram-nos todo o tipo de sofrimento com o avanço das serralherias. Nossa madeira passou a ser objeto de exploração perdulária e muitas de nós já não existimos mais. Então, inventaram a motosserra e isso foi fatal para todos nós. As grandes florestas estão por pouco tempo! Mais felizes somos nós que vivemos enfeitando jardins e ruas vendo o movimento das pessoas! Ao que parece, teremos perspectivas de vida longa. As da mata, coitadas, estão por um fio!
Não bastasse isso, estamos sendo lentamente envenenadas pelos produtos químicos que chamam de “defensivos agrícolas”... Argh!
Bem! Mas não estamos aqui para falar dessas coisas ruins, mas sim para dizer que estamos desejosas de voltar a falar com vocês, como antigamente fazíamos. Hoje, só quem ainda conversa com as árvores são as crianças. Muitas delas, quando estão fora do alcance dos mais velhos, falam conosco em suas brincadeiras ou mesmo, quando estão sozinhas.
Elas nos abraçam, nos acariciam, chamam-nos por nomes carinhosos, sempre no diminutivo! Quando ficam grandes, são cooptadas pelo desejo de “vencer na vida” e esquecem da antiga amizade!
Alguns adultos ainda tem um fundinho de ligação conosco e admiram nossas galhadas, nossas folhagens, floração e, principalmente os frutos. Esses do agronegócio só pensam no que vão ganhar vendendo nossos produtos e, para isso, até mesmo mutações genéticas vão nos impondo... Você não imagina quanto sofrimento nos infligem!
Mas, com você é diferente! Já percebemos o quanto gosta de nós pois sabemos das fotos que você anda tirando das nossas primas e irmãs floridas e carregadas de frutos. Você e massa! Foi por isso que combinamos com os seus olhos! Era para você vir parar aqui, com a gente, para esse papinho descontraído!
Pois é, meu amigo nós não só falamos como vemos, ouvimos e, principalmente, sen-ti-mos! Agora, quando quiser, é só se achegar a qualquer uma de nós, em qualquer lugar, e prosear um pouco! Não é legal isso?
-- Bem! Respondi! Confesso que ainda ficarei confuso por um bom tempo, mas saio daqui com vontade de abraçar todas vocês e agradecer por terem me escolhido! Só que não poderei comentar com ninguém para não correr o risco de ser chamado de maluco. Foi uma experiência e tanto! Simplesmente, i-nes-que-cí-vel!
-- De maluco, todo mundo tem um pouco e você não podia fugir à regra, não é? Ora! Um cara que sai por aí tirando fotos de árvores, no dizer da maioria, só pode ser meio maluco mesmo, não é? Hahahahahahahaha!
Quando dei por mim, estavam todas as árvores rindo da minha situação inusitada e a jaqueira fazendo xixi nas calças se esborrachando de tanto rir. Ela estava literalmente rindo da minha cara!
Dei um tchau meio sem graça, um sorriso amarelo e fui saindo de fininho. Peguei a estrada e vim correndo para o computador contar a vocês a doideira desse domingo chuvoso. Nunca esquecerei a cara daquela jaqueira gozadora!
Anunnak
Sobradinho-DF – 24/11/2013