O MALAMÉM

Lucinha era uma menininha de uns seis anos que vivia em pequena rua de um bairro de classe média. Seus pais, de situação financeira remediada, não tinham maiores preocupações, na vida, a não ser a segurança que a liberdade acabara por transformar em insegurança.

Leitor assíduo de jornais e viciado em noticiários da televisão, Agenor, o pai, era tido com um sujeito informado e um bom papo nas rodadas da cerveja, com os amigos, nos finais de semana, quando vociferava contra o avanço da intromissão do Estado na vida do cidadão. Sentia-se espremido entre o Estado e a violência do crime organizado ou não.

Um dos poucos assuntos que não lhe estimulavam o discurso era o futebol. Sim, o futebol! Não podia compreender o absurdo espaço midiático dado a esse “esporte” e, principalmente, o endeusamento abusivo de jogadores, transformados de uma hora para outra, em celebridades. Esse pensamento avançava sobre outras modalidades esportivas que seguiam o mesmo diapasão. Tudo sob o controle das multinacionais.

Criticava o pedantismo da mídia ao, de uma hora para outra, trocar o nome de “estádio ou campo de futebol” para a esdrúxula “arena”. Ora, pombas! Arena é uma palavra espanhola que significa “areia”; um lugar onde são realizadas as touradas, com chão efetivamente de areia, com bosta de touro e tudo!

Como assimilar o nome de “arena” para um campo esportivo cujo solo é forrado de grama, seja natural ou artificial? Qual a razão disso?

Que força teria o babaca que inventou isso e que foi logo assimilado pela imprensa de Norte a Sul e de Leste a Oeste? Pura cretinice! Dizia.

O Carnaval era outro assunto distante, já que não podia entender o convívio de intelectuais descidos dos apartamentos da Zona Sul, com a pobreza das favelas, cinicamente chamadas de “comunidades”.

Achava que o futebol de esporte não tinha mais nada, desde que a cartolagem fundiu-se com empresas multinacionais e miliardários do jet-set mundial, gerando, para essa gente, rios de dinheiro. No meio disso, muita corrupção, manobras com políticos, gente do governo, e jogadores comprados e vendidos como se fossem escravos.

No meio de toda essa pilantragem, as torcidas organizadas se agredindo como se estivessem em um campo de batalha, dando porrada uns nos outros e levando porrada da polícia. Mas que estupidez!

A mãe, Doralice, conhecera Agenor em um encontro da Juventude Católica, na igreja do bairro. Os dois eram católicos até à medula e seguiam “religiosamente”, os ditames da ritualística, das Escrituras e, principalmente, do Padre Veiga, nos sermões dominicais. Homoafetividade era assunto tabu para os dois que não tiravam uma vírgula do desejo do Criador de ter um casal formado por um homem e uma mulher. Assim, o Seu desejo era a procriação e não simplesmente a fornicação! Por isso, viam no carnaval a explosão da carne como uma espécie de orgasmo coletivo em que o instinto andava à solta, chovendo sêmen no país inteiro!

A vida familiar era tida como corretíssima e Lucinha além de receber o carinho e a proteção dos pais, vivia em um ambiente de oração e temor a Deus, acostumada que estava, com o ritual das orações que antecediam o desjejum, o almoço, o jantar e a hora de dormir.

Certo dia mudou-se, para a casa vizinha, uma família constituída por um casal, duas meninas, e um menino. Como procedimento normal entre crianças, logo estava compactuada a amizade que seguia o curso sem maiores problemas.

Lucinha era educada com noção de deveres e, principalmente de horários. Logo, tinha horário para tudo e, principalmente horário para brincar. À noite, não ultrapassava o horário de dormir, sempre por volta das oito e meia, um pouco depois do jantar. Nada de novelas ou programas televisivos que distorciam os valores familiares, a História, o comportamento das pessoas e, principalmente, o comportamento das crianças.

No exercício do excessivo zelo materno, Doralice deixava passar a ideia de que o mundo era mau e que sempre deveríamos estar atentos para as coisas que levavam as pessoas ao sofrimento e aos sentimentos de impotência ou desamparo. Assim, era necessário manter certa distância das pessoas desconhecidas, principalmente, as adultas.

Na ânsia pela informação, Agenor era espectador, de carteirinha, dos programas do Marcelo Rezende, Datena, Henrique Chaves, todos mostrando as maldades que proliferavam próximas de nós. Era um sem-fim de sequestradores, estupradores, assaltantes, tudo isso misturado com políticos e administradores corruptos e saqueadores do erário público.

A menina, mesmo sem dar muita atenção, bombardeada por esse tipo de notícias acabava, mesmo inconscientemente, sendo introjetada pela ideia da maldade das pessoas e do mundo. Assim, formou, na mente, a ideia do Malamém, indivíduo a quem atribuía ser capaz das piores atrocidades, principalmente contra as crianças.

O medo e o terror era o que sentia somente em ouvir falar o nome desse facínora. Chegava a ficar suando e ter os batimentos do coraçãozinho acelerados. Às vezes chegava a chorar, com soluço e tudo...

Mas, sempre, antes de dormir, a mãe sentava-se em uma poltrona postada ao lado da cama da menina e lia alguns versículos do Evangelho ou alguma notícia dando conta das andanças e da falação do Papa ou do Bispo local, D.Tubino. Encerrado o assunto do dia rezava, com a menina, um “Pai Nosso”.

Lucinha não entendia muito bem o que queria dizer a oração, mas aprendeu que era uma forma de falar com “Papai do Céu”, pedindo-Lhe proteção. Assim, sentia-se confortada e imaginava que seu sono seria assistido por uma porção de anjinhos, todos de bochechas rosadas e rechonchudas onde estaria à salvo das atrocidades do Malamém.

Certo dia, Lucinha estava brincando com as crianças amigas, da casa vizinha e, notou que os últimos raios do Sol estavam se apagando, dando entrada aos primeiros sinais da noite. Para ela, a noite era associada a algo ligado a assombrações, perigo, vampiros, bruxas e, principalmente, ao medo do Malamém que costumava agir, preferencialmente, protegido pela escuridão da noite. Pensando assim, apressou-se a dizer aos amiguinhos de folguedos que teria que ir para dentro pois já estava ficando escuro.

Como a diversão estivesse no auge, uma das meninas perguntou se não poderia brincar mais um pouco? Mostrando um esgar de impaciência, Lucinha retrucou que não queria mais brincar pois tinha medo do Malamém que poderia aparecer por ali e fazer alguma coisa ruim para algum deles.

Bebeto, o menorzinho, então, perguntou: Quem é esse Malamém, Lucinha? É preto ou branco? Barbudo ou careca? Tem unhas grandes? É gente ou bicho?

Lucinha, já se afastando do grupo, em direção ao portão da casa, foi logo respondendo: Nunca vi e nem quero ver! Só sei que, toda a noite quando vou dormir, minha mãe e eu rezamos pedindo ao Papai do Céu para nos proteger e livrar dele. Mamãe e eu sempre rezamos um Pai Nosso e sempre pedimos a Ele, “livrai-nos do Malamém”!

Com essa expressão, correu para dentro com a boneca embaixo do braço. As outras crianças não fizeram por menos, saíram correndo, também, todas com medo do Malamém...

Amelius – 31/10/13 – 20:25Hs

Amelius
Enviado por Amelius em 31/10/2013
Reeditado em 16/05/2021
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