O bar

Estou bem. Deitada na cama e vendo através da janela pequena de metal, a lua no céu como se fosse um quadro emoldurado. Escolhi uma bela noite. Confesso que a mochila ficou pequena e que a janela deu um certo trabalho para pular. Morar no alto também não compensa nesse caso. Tentei não fazer barulho, mas desastrada, acabei esbarrando em um cadeira no canto do quarto enquanto dava uma ultima olhada no rosto quase que angelical de minha irmã dormindo. Ela se mexeu um pouco, mas não passou disso. Resolvi partir sem pensar duas vezes. Uma vez na rua, um caminho sem volta. Não me dei ao trabalho nem de deixar um bilhete. Essa ideia de bilhete me incomoda.

Passando pelos becos escuros e fedidos da rua com uma camiseta, uma blusa de frio por cima, minha calça jeans - confesso que não é uma de minhas melhores - e meu velho e surrado all star, admito que não foi uma escolha muito boa para essa madrugada fria de congelar até o ultimo osso da espinha. No fundo, eu não ligo. Estando fora de casa, longe dos problemas, das discussões… era bem reconfortante, pelo menos para mim, pelo menos naquela noite. Confesso que não planejei. Apenas pensei e fiz.

Em meio ao frio congelante da madrugada, eu podia sentir o ar fresco e a fumaça esbranquiçada alcançar a ponta do meu nariz e passar pelos meus olhos toda vez que respirava um pouco mais confiante. As ruas pareciam uma pintura em preto e branco e sem sentido - pareciam mais convidativa quando a via pela janela - num tom metálico e sem vida. Ouvi um barulho de lata. Acho que veio de algum ponto atrás de mim. Ajeitei o óculos no rosto e apertei o passo. A única arma que possuía, era um canivete suíço que sempre levava no bolso. Presente de meu pai.

Agora, um pouco longe de casa e tarde demais para voltar - embora tenho a certeza que todos estão dormindo ainda e se voltasse, ninguém nem ia saber que sai - vejo uma luz aconchegante ao dobrar uma esquina. Enquanto me aproximo, uma batida provocante e familiar fica mais nítida aos meus ouvidos. Reconheceria aquele estilo de música em qualquer lugar. Era o bom e velho ronck´n roll. O som não estava alto. Estava tranquilamente agradável. Convidativo. Continuo andando em direção ao bar.''Estranho um bar estar aberto à essas horas''. Pouco me importo. Relaxar seria bom.

Parada em frente as portas de madeira com uma parte de vidro, aperto a visão para tentar ver o que há dentro ou quem está lá dentro, mas sem sucesso. Não vendo outra alternativa, encosto a mão na madeira gelada da porta e a empurro devagar. Confesso que meus pés sujos de lama no chão branco impecável, me fizeram recuar por um instante.

- Uma moça como você, não deveria estar na rua à essas horas. - disse uma voz vinda de dentro do bar. - Não é seguro nem para mim.

Senti uma leve sensação de calor invadir meu corpo e sair com a mesma facilidade que entrou. Pensei em dizer algo mas a única coisa que conseguia eram meias palavras que vinham até a garganta e voltavam.

- Está tudo bem? - ele disse. - Deve ser o frio que está te fazendo tremer.

Na verdade eu senti inúmeras sensações naquele instante, mas tenho certeza que nenhuma delas era o frio que me causara a tremedeira. Me senti estranhamente envolvida naquela voz.

Olhei novamente para meus pés imóveis. Queria entrar mas senti que não podia. Era quase que como um pecado sujar aquele chão com os meus pés imundos.

- Se é a sujeira do pé que te incomoda, não se preocupe. Limpo isso de 5 em 5 minutos. - disse a sedutora voz, que pouco depois pude identificar de onde vinha. Confesso que me arrepiei quando o vi. Menino de corpo mediano e ombros largos, nariz fino, rosto impecável. Mãos deslumbrantes enquanto tirava o cabelo negro como a noite, da direção dos olhos. Admito que ao contrário de mim, ele foi muito feliz na escolha da roupa. - mas sinceramente acho que a roupa não importava. Ele parecia ficar bem de qualquer jeito. - Blusa branca com gola em ”V” e manga cumprida, que foi delicadamente dobrada até a altura do cotovelo. Calça jeans escura e confesso que mais nova que a minha. Me senti levemente humilhada perto da beleza do rapaz. Eu pude sentir o meu olhar de vergonha de mim mesma. Trazia nos pés um all star preto com alguns detalhes em branco.

Ele continuou dizendo enquanto trazia algumas taças a mão. - Se não for entrar de uma vez, eu vou ter que fechar a porta e acho melhor você não ficar entre ela e a parede.

Relevei a ignorância e resolvi encarar a rispidez das palavras do rapaz como um convite, afinal, não tenho para onde ir ao certo. Poderia gastar horas e horas aqui, parada na porta tentando compreender o real significado das palavras do rapaz. Não classifiquei como ignorância, às vezes ele só tivesse trabalhado muito. Afinal, não é todo dia que estamos em um bom dia.

Sacudi um pouco os sapatos sujos de lama e pisei no tapete marrom na entrada. Dava para sentir o som das pedrinhas junto com a lama bem embaixo de meus pés que fazia um barulho agressivo quando entrava em contato com o chão branco ''Colgate''. Me aproximei de uma das várias mesas com umas cadeiras empilhadas, e fiquei ali. Parada Catatônica. Acompanhando os movimentos do rapaz.

- Vai se sentar ou quer que eu mande uma carta com um desenho convidando-a?

Me senti um pouco ofendida nesse instante, mas decidi ignorar mais uma vez e continuar ali para ver até onde isso me levaria.

- Sabe… você realmente não me parece uma das pessoas mais simpáticas. - disse enquanto tirava minha mochila pesada das costas, afastava uma cadeira e me sentava.

Ele apenas riu.

- Pra quem eu pensei que não falasse, até que você tem a língua afiada. - disse ele deixando as taças sobre o balcão.

- Você disse que é perigoso uma menina como eu andar à essas horas sozinha pela rua… mas… e você?

- O que tem eu? - perguntou ele, agora colocando uma garrafa de vodka sobre o balcão e olhando fixamente para mim.

- Bem… digamos que não é um horário bom de funcionamento. - respondi me perguntando se alguém, fora eu, já tivesse estado ali nesse horário.

- Sabe… - disse ele agora pegando uma flanela e ariando as taças. - As pessoas fazem coisas estranhas por motivos diversificados, mas… - agora ele colocou a taça novamente no lugar e direcionou o olhar para mim, apoiando ambas as mão no balcão e esticando os cotovelos. - Mas nem por isso as julgamos.

Podia jurar que essa ultima frase dele foi direcionada a mim. O olhar dele me era estranhamente familiar. Me pergunto se já o tinha visto antes.

Eu apenas baixei a cabeça para desviar o olhar. Dei uma leve passada de mãos nos meus cabelos curtos e mal presos. Olhei novamente para o balcão e agora ele estava de costas para mim mexendo em algo do outro lado.

O lugar era confortavelmente aconchegante. Quase todo feito de madeira. Nunca tinha visto um lugar assim antes.

- Qual o nome desse bar? - perguntei ao rapaz no intuito de o assunto não morrer.

Ele não respondeu. Apenas mudou a música. Nesse instante eu queria acreditar que ele apenas não ouviu, embora tenha quase que certeza que ao perguntar a ele, ele olhou nos meus olhos mas virou o rosto.

- Quer beber algo? - ele me perguntou em um tom quase irônico.

Não era uma boa conhecedora de bebidas. Com medo de parecer idiota, eu olhei as bebidas em volta em busca de uma opção.

- Hum… - resmungou ele em um tom de riso. Um tom de riso irônico. - Vejo que você não sabe muito sobre bebidas. - terminou ele pegando uma garrafa no fundo do balcão.

Baixei a cabeça e poderia jurar que ouvi ele cochichar consigo mesmo a palavra ''NERD''. Observei ele pegar um copo e despejar dentro dele a bebida da garrafa. Uma bebida de coloração verde fluorescente. Essa cor não me era estranha.

Ele se aproximou de mim e olhando em meus olhos, deixou a bebida sobre a mesa, se virou e andou em direção ao balcão novamente.

Fiquei encarando o copo.

- Eu acho que ele não vai até a sua boca sozinho. - disse ele rindo em um tom de ''Que desajeitada''.

Decidi virar de uma só vez o copo. Desceu queimando ao mesmo tempo que esfriou tudo por dentro. Nunca bebi nada igual.

- É, parece que você aguentou esse primeiro… - ele, que estava a caminhar em direção ao balcão, parou subitamente. - “Tranco”, por assim dizer. - completou ele rindo.

- Sou mais forte do que imagina. - retruquei imediatamente.

Ouço o barulho da porta e quando direciono meu olhar, vejo uma figura de beleza sobre-humana. Uma mulher linda. Completa. Corpo curvilíneo. Longos cabelos pretos. Olhos azuis. Muito bem maquiada. Confesso que a roupa que ela escolheu, realçou os belos seios e pernas. Totalmente o oposto de mim. Menina desajeitada. Magra. Como é mesmo a palavra? Hum… errônea, isso mesmo. Essa é a palavra que me definia naquele momento. Acho que até a mais famosa atriz, se sentiria humilhada pela beleza da mulher.

Ao entrar, ela nem olha para o balcão. Passa diretamente esquivando-se sublime entre as pilhas de cadeiras e para bem na minha frente.

- Posso? - pergunta ela com a mais angelical voz que já ouvi, apontando o cumprido dedo indicador para uma cadeira ao meu lado.

- S... sim. - respondo desajeitada a pergunta dela.

Nesse mesmo instante, ouço tocar ao fundo a "Born to die" da Lana Del Rey. Acho a letra e melodia dessa música, envolventes e confesso que veio a calhar para o momento.

- Aceita mais um, moça? - pergunta o misterioso rapaz expondo á mesa mais um copo daquela bebida verde.

- Então... o que faz aqui à essa hora? - pergunta a mulher prendendo um cigarro entre os dedos e o ascendendo.

- Eu... eu... - eu estava hipnotizada demais para responder. Confesso que meus olhos conseguiram, de alguma forma, apenas acompanhar aquele olhar sedutor meio baixo, aquela boca de lábios vermelhos se abrirem em câmera lenta, tragar a fumaça até ela sair e embaçar meus óculos me trazendo novamente a realidade. - Eu estou apenas tentando ser livre. - respondo a ela ao mesmo tempo que tiro meus óculos e limpo as lentes desgastadas na parte de dentro da minha blusa de frio.

- Então quer dizer que você quer ser... ''livre"? - pergunta ela com um tom de ironia bem carregada a voz, agora cruzando as pernas e deixando as belas coxas mais evidentes.

Olho para o balcão e vejo o garçom misterioso olhando para mim meio tímido - o que confesso que foi estranho - e sorrindo. Um sorriso lindo e envolvente de canto de boca que me fez perder o fôlego.

- Algum problema? - pergunta ele deixando de lado a toalha que tinha em mãos.

- humm... não. Só ia te pedir outra bebida.

No fundo eu não ia não. Só queria mesmo disfarçar.

Achei estranho ele ignorar a moça sentada ao meu lado fumando em um ambiente fechado.

- Bom... - diz ela tirando o cigarro da boca e quebrando o silêncio. - Se é de liberdade que precisa, eu acho que posso conseguir pra você.

Ela agora olhava fixamente para mim enquanto esboçava um sorriso sinistro com um leve ar de mistério.

Eu estava envolvida com o ambiente, com a música, com o garçom e com a conversa dela. Ia dando "corda" até ver onde isso ia me levar e antes que eu pudesse pensar em se quer respondê-la, o garçom grita do outro lado do balcão.

- Hey! Garota!

Eu olho para ele, olho para ela, olho para ele e... por mais que essa moça me prendesse, minha vontade de ir com ele era maior. Dou lentos passos em direção ao balcão e quanto mais perto eu estava dele e do balcão, mais distante e demorado me parecia. Quando cheguei até a madeira fria da estrutura, ele inclinou o corpo para frente e chegou tão perto de minha face, que eu podia sentir o cheiro de eucalipto do seu hálito tocar levemente minhas narinas como se tivesse convidando meus lábios a tocarem os dele.

- Pode fazer um favor pra mim? - pergunta ele sussurrando deliciosamente. Confesso que senti até o ultimo pelo de meu corpo se arrepiar e sem força para responder, apenas assenti com a cabeça em um gesto de "sim".

- Escolha uma música que essa será a ultima da noite e por minha conta. - sussurra ele apontando para a JukeBox atrás de si.

Eu caminho lentamente até rodar o balcão e passo pela entrada. Vejo ele me observando sorrindo e com uma das mãos estendidas para dar a minha a ele. Olho para a mesa que eu estava, e vejo a bela mulher amassar a pita de cigarro, sorrir no tom de deboche, se levantar e sair dali. Chego na máquina e no meio de tantas músicas, escolho a "Far Away" do Nickelback. Eu senti de alguma forma que essa era a música para o momento. Apertei o "Play".

- Excelente escolha. - disse o garçom misterioso sussurrando e sorrindo enquanto me envolvia em seus braços me embalando lentamente ao ritmo da música. Senti que nada mais importava. Aquele era o momento prefeito e quando eu pensava que não podia melhorar, sinto ele se afastando devagar, passando uma das mãos em meus rosto. Lembro-me de me entregar inteiramente ao momento. Ele se aproximou e nossos lábios se tocaram e dançaram juntos.

Ouço um barulho distante e que vai ficando cada vez mais nítido. Abro os olhos com o meu despertador tocando e vejo a mochila arrumada na beirada da cama.

Tudo não passava de um sonho. Um sonho do qual eu não queria ter acordado...

Ele era meu anjo e ela meu demônio e eu fiz a escolha certa.

Irrila
Enviado por Irrila em 29/10/2013
Reeditado em 30/10/2013
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