Banhas pra que te quero!
Movimentar-se já era um grande sacrifício àquela altura. 212 kg esparramados numa cama de concreto. Perguntava-se a todo instante como chegara a tal ponto. Culpou a mãe, pela falta de educação alimentar, culpou Deus por coloca-lo no mundo para sofrer, culpou os fast-food da cidade por oferecer comidas tão suculentas e gordurosas.
Damião havia nascido com sobrepeso, como se já estivesse destinado a obesidade mórbida, talvez devessem inventar outra categoria para tamanha gordura acumulada. Os lençóis careciam ser trocados diariamente devido a sudorese que transbordava por cada dobra de seu corpo. Seus únicos momentos de felicidade se restringiam aos momentos compartilhados com prostitutas pagas pela pensão que recebia por invalidez. Com tanta gente morrendo de fome por falta de dinheiro, ele ganhava por comer demais.
Parecia ter por volta de 30 anos de idade, não tinha nenhuma aspiração para seu futuro, nem emagrecer ele pensava mais, desconhecia a possibilidade real disso acontecer, mesmo com o sentimento de angústia e inércia que rondava seu cotidiano, aparentava certo conformismo, vivia uma refeição de cada vez. Certo dia, sua mãe entra em seu quarto escuro e mofado com um olhar estranhamente esperançoso, contando-lhe da sua conversa com um cientista que estava a desenvolver um método quase que milagroso de emagrecimento, e precisava de cobaias para o experimento. “É sua chance meu filho, sua chance de mudar de vida, sair dessa cama e ter uma vida normal!”, falava com um olhar cristalino cheio de expectativas. De início, Damião não se interessou, achava que tudo não passava de conversa fiada para sugarem dinheiro do Governo. Ele sempre defendia veementemente o Governo, “no final das contas é ele quem garante meu sustento”, pensava.
Mas depois de muita choradeira e insistência maternais, Damião concordou em fazer parte dessa pesquisa. Como ressaltado pelo Cientista, era um processo arriscado, podendo haver complicações sérias e risco de morte. O pobre obeso não ligava, sentia-se a beira da morte a cada mordida num hambúrguer. Pois bem, todos os tramites foram sendo feitos. Depois de três meses de preparação Damião voltou para casa com uma engenhoca grudada em suas costelas ligada internamente a seu estômago. Esse aparelho era capaz de sugar tudo de nocivo nos alimentos digeridos, deixando somente os nutrientes e vitaminas essenciais ao ser humano, uma espécie de filtro de gordura.
Tempos depois, os resultados superaram as expectativas. Nos primeiros meses, apesar do mal-estar de Damião por sentir aquela coisa sugando tudo que ele comia, começava a perceber os efeitos positivos. Dois anos se passaram e chegara a hora de remover o aparelho. Damião havia perdido incríveis 130 quilos. Era um novo e pelancudo homem, sem aquela gordura exorbitante, sem a parafernália que se divorciou de suas costelas, sem a pensão do Governo também, afinal, sua invalidez foi embora junto com sua adiposidade. Começaria do zero e poderiater a vida normal que sua mãe sempre sonhou. Aliás, ela era só felicidade, ao ver o filho sair para passear com o cachorro e interagir com outras pessoas sem que os olhares de pena e nojo o cercasse.
Algumas semanas depois, atenciosa como sempre foi, ela percebeu que Damião havia emagrecido mais ainda, suas feições estavam mais secas e cruas. Ele não se importava, pelo contrário, cada quilo perdido era motivo de alegria. Dois meses depois, mais 30 quilos deixaram aquele corpo que já trazia consigo ondulações típicas dos ossos das costelas e olhos com cavidades mais fundas.
A mãe cada vez mais preocupada pediu para que o Cientista responsável pelo projeto viesse examinar Damião, pois além do aspecto visual, sentia-se fraco e indisposto. Depois de algum tempo de exame, eis o diagnóstico: o organismo dele não estava mais apto à digestão completa de alimentos, devido ao grande espaço de tempo em que era o aparelho o responsável por realizar esse processo, o sistema digestório funcionava agora de modo precário e não tinha mais condições de voltar a operar normalmente. Dito isso, Damião finalmente entendeu porque sempre via em seus excrementos pedaços intactos de pão, carne e outros alimentos que não foram digeridos. A situação era irreversível. Damião estava sentenciado a morrer de desnutrição. Sua mãe sentia o peso da culpa como se todos os quilos que ele havia perdido estivessem agora nas costas dela. Entrou em desespero. O Cientista sumiu do mapa. Damião, perplexo, ficou estático por alguns instantes.
Vários médicos foram consultados, mas nenhum deles sabia como lidar com o caso, nesse meio tempo, Damião jazia esquelético, com os joelhos mais espessos que as coxas e as costelas saltando à carne. Debilitado, voltara à sua cama, a velha e mórbida cama, que agora acolhia um graveto de homem. A morte estava à espreita e já soava inevitável, com um sorriso no rosto Damião brincava com a ironia de sua própria vida, “pelo menos desse jeito não vou dar trabalho pra enterrar”, e foi este seu último pensamento.