O Relógio e o Bosque

O relógio, antigo que fosse, marcava as horas acima da lareira em que tocas de lenha queimavam. Era um silêncio prazeroso, apesar de me sentir tão só.

Não estava sozinho, porém, o espírito de uma senhora sentada frente a lareira estava quase hesitando em se demorar. Era assim em um casebre em meio a um bosque que sabe lá como fui chegar. Não me lembrava de minha vida antes da cabana, talvez nem quisesse, pois tudo que desejava era a paz solitária em que lá desfrutava. O relógio, a lareira, a velha e alguns livros em uma estante eram o meu mundo. A maior diversão minha resumia-se a sentar ao lado da velha, frente ao fogo, e ler em vós alta livro por livro, para que ela pudesse compartilhar comigo diferentes histórias.

Eram livros distintos uns dos outros, escritos à mão, uns longos e outros curtos. Quando o relógio marcava 18:00 horas, o sol se punha vagarosamente, e esse era o momento em que eu abria um livro para contar-lhe sua história. Lia até umas nove horas e depois ia dormir, sempre divagando sobre aquelas vidas inseridas no livro, seus momentos alegres e também as intrigas de seus personagens.

E que noite agradável! Dormia sem problemas pela brisa noturna e agradável que o bosque exalava. Os bichos noturnos faziam pequenos ruídos, assim como a velha senhora que roncava em sua cadeira de balanço frente a lareira, alimentada por mim com grossas toras de lenha.

Quando acordava de manhã cedo, ia ler novamente depois de comer um delicioso café que eu mesmo preparava com mel e pães frescos. A senhora nunca cansava de minhas leituras, apesar de pouco falar, ela sorria e talvez lembrasse de algo parecido em sua vida em momentos felizes dos livros, uns tão velhos e outros mais novos. As histórias eram sempre diferenciadas, os lugares mudavam, os fatos curiosos também, e só em suas estruturas que mantinham-se igual para todos os romances: Eram escritos em primeira pessoa em que o protagonista narrava os acontecimentos com maestria e muita reflexão.

Porém, como nada dura para sempre, tive a ideia de escrever um livro em que eu contasse a ela uma história da minha imaginação, originalmente dela, e não de outros autores: Pois é uma necessidade que um leitor assíduo enfrenta em sua vida, a de querer demonstrar sua própria criatividade e impressão. Acredito que é assim que nasce um escritor.

Na estante tinha livros em branco, para serem escritos: Juntei caneta, inspiração e criei uma história meio assustadora, em que contava a história de um pai de família constrangido com sua eficiência profissional. Não sei bem o porquê da ideia, pois elas vinham como do nada, fazendo com que eu escrevesse sem parar.

A velha nem se preocupou, ficava lá com um sorriso no rosto por saber que eu estivera a dois dias preparando uma história para contar. Eu estava ansioso para ler e perceber os sobressaltos dela.

Nas leituras que lá havia feito, houvera histórias semelhantes daquela que eu escrevia, porém eu sabia que uma boa obra estava pronta para sair. Quando terminei, pela tarde do segundo dia de escrita, comecei a lê-lo assiduamente. Havia chovido pela manhã e a natureza estava belíssima com o nascer do sol, o orvalho saindo das folhas e os pássaros cantando. Enquanto lia, a senhora esbanjava-se de alegrias pela minha criatividade, e eu aprendia aos poucos como é gostoso mostrar a uma leitora velha e vivida aquilo que criara. Porém, sem saber porque, ao final da história, ela choramingava baixinho. O final da história era feliz!

Chegando perto das seis horas, resolvi colocar o meu livro na estante, e como nenhum dos livros tinha a autoria grafada, resolvi não contaminá-lo com o meu nome. Uma tristeza silenciosa se apossou de mim, e vislumbrei aquele pôr de sol lembrando de todos os demais que havia visto naquele bosque.

Foi então que ouvi o relógio despertar, tocando grave pela casa. Enquanto isso a senhora voltava a lamentar. Minha visão foi aos poucos se apagando, assim como meus sentidos, até que caí em um sono profundo acordando em minha antiga cama, com minha mulher que saia do banheiro com uma toalha enrolada no corpo:

“Não ouviu o despertador? Está atrasado, amor.”

Nunca tive consciência do que isso poderia ser, pois pelos longos dias que fiquei naquela cabana transformava o sonho de um dia de sono improvável, e eu apenas virei para minha mulher e lhe disse:

“O que aconteceu comigo esta noite?”

Ela estranhou minha pergunta e apenas disse:

“Nada, meu querido, você estava inquieto, apenas, falando coisas sem sentido como... se falasse com alguma senhora. Eu sei que ontem você teve um dia difícil com o sermão que seu chefe lhe deu, mas deve se acalmar!”

Nunca mais me esqueci deste fenômeno, pois aprendi muito com ele. A partir de então comecei a escrever buscando a liberdade, e em cada história que crio faço menção a uma tal cabana em que só se pode ingressar em sonhos, quando algo falta e deve ser complementado.

De alguma maneira eu sentia a senhora viva, assim como todo aquele cenário. Se fosse possível, voltaria lá para ler a esta solitária criatura, em que a alma hesitava em partir daquele mundo mágico e bucólico.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 24/10/2013
Reeditado em 26/10/2013
Código do texto: T4540452
Classificação de conteúdo: seguro