A Balada do Enforcado
A Balada do Enforcado
Trago uma viola nas mãos e uma canção no coração. Mas não pense que ela fala de amor, não. Os sentimentos que escorrem pelos acordes dessa melodia brotam do ponto mais úmido, frio e amargo da alma humana.
Além do amor, não muito além, existe a dor, existe a mágoa, a solidão e por fim... Existe o rancor e o ódio.
Todos nós percorremos sempre o mesmo trajeto. Por diversos atalhos, diferentes caminhos, mas sempre o mesmo destino. Dos sonhos à desesperança. Do amor ao ódio. Da vida à morte.
Eu toco a canção do fim.
Amor e morte. Gêmeas dançarinas que se revezam e bailam a mesma sinfonia. A cada acorde, um rodopio, um salto sutil, uma troca imperceptível da doce donzela, e no fim, no palco apenas uma ficará, amor ou morte, e não importa quem seja ela, tudo sempre acabará em música, em flores, em lágrimas e em velas.
Confesso que Já flertei com ambas, mas foi a morte que me conquistou e o fez de tal maneira que embriagado por uma paixão insana me atirei de olhos fechados e me deixei levar em suas frias carícias e abraços.
Uma corda ao redor do pescoço, um banquinho de madeira sob os meus pés, fechei os olhos e bailei com a morte a triste sinfonia dos desiludidos...
E desde então tenho vagado por ai com uma viola na mão e uma canção no coração, pois esta é a agonizante punição dos desistentes: vagar. Sem norte, sem ponto de partida ou local para chegar, apenas vagar e vagar. Caminhar entre os mortais, entre os sorrisos e as lágrimas. E assim, por toda a eternidade, pagamos por nosso pecado.
Vendo nos rostos lívidos, sonhos vívidos, esperanças florescerem, como erámos, como jamais seremos de novo.
Carrego na lembrança um nome, Natalie. Criança do sorriso que me acalmava e mulher do olhar que me fazia sonhar. E ela fez. Me fez sonhar. Me fez crer que ao seu lado o impossível seria banal.
Natalie.
Me deu um sonho para viver e asas para voar. E num dia frio de inverno, o chão se abriu sob meus pés e ela me deixou despencar... E assim o amor tornou-se morte em mim.
Ela apenas partiu levando consigo minhas asas. E eu caí... Caí em solidão, em depressão, em desespero, e por fim, por fraqueza, por covardia, por não aguentar mais o espaço vazio que ela deixou em mim, subi em cima de um velho banco de madeira, com minha viola nas mãos, e tocando a nossa canção, fechei os olhos e novamente me deixei cair.
Achei que esta seria a última e acalentadora queda, mas desde então tenho vagado por aí. Com uma viola na mão e uma corda ao redor do pescoço para que eu nunca me esqueça do crime que cometi.
Vago pela noite pelos tortuosos caminhos das doces recordações. Sempre acompanhado de perto pelo piar de aves agourentas enquanto atravesso vastos jardins de tulipas brancas. Esta é a terrível graciosidade do inferno, a doce lembrança do belo, do simples, do puro, a lembrança da vida que abandonei constante por todos os lados, por todos os caminhos, por todos os atalhos.
Tulipas e corujas. A vida e a morte, o belo e o lúgubre. É neste mundo que caminho sem ser notado... Entre os vivos e os mortos.
Procuro por outros corações partidos, por sonhos despedaçados, por iludidos e desiludidos. Procuro por outros e não são difíceis de serem encontrados.
Todos têm uma história que gostariam de esquecer, um passado que tentam enterrar. Um adeus não dito. Uma lágrima que fez rolar. Todos têm algo que tentam inutilmente não recordar, ou com o tempo simplesmente aprendem a ignorar, aprendem a vil arte de desviar o pensamento, mas que de repente, uma simples canção tocando traz à tona a lembrança viva e cruel carregada de toda a dor viva da época e não importa a quanto tempo foi, ainda faz chorar... Eu toco essa canção.
Caminho pela madrugada, pois é na cumplicidade das horas mortas que eles se encontram. Em bares, em boates, em clubes, ou até mesmo na solidão de um apartamento que ao agito do dia ostenta luzes, cores e vida; nas madrugadas, se torna denso, vazio e cinza. Aqueles quem procuro estão por aí. Espalhados, apenas esperando a minha musica tocar.
Alguns amigos reunidos n’uma mesa de bar. Entre eles, ela. E ela sorri, ri, fala alto e gargalha de suas próprias piadas. Entre cerveja e petiscos ela se diverte com os amigos. Então com os dedos nas cordas da viola, eu dedilho uma triste canção e a lembrança de seu filho morto ressurge na memória. Seus amigos não percebem, mas ela não mais sorri.
Ela se levanta e mal se despede. Disse apenas que precisava ir embora. Alguém se ofereceu para acompanhá-la, mas prontamente a oferta foi recusada. Ela chorava e não queria que suas lágrimas fossem testemunhadas. Não queria que vissem a dor explicita estampada em sua face, escorrerem para morrer em seus lábios finos e frios.
Ela mora perto. Decide ir embora a pé. Não suportaria ser interrogada por taxistas. Prefere sofrer calada. Caminha devagar pela calçada. Relembra seu tempo no hospital após as doses de pílulas e álcool. A depressão. O desespero. As acusações de seu marido feitas em silêncio: Assassina! Seus olhos diziam cada vez que ele olhava para ela: Assassina! Foi um segundo apenas. Um descuido. A bola de seu filho atravessou a avenida e ele a seguiu. Um segundo apenas. O som da freada brusca seguido pelo do impacto. Sete anos, dez meses, cinco dias, oito horas... A vida interrompida em um segundo de descuido.
Ela nunca se perdoou. Ele nunca a perdoou. Semanas depois encontrou a casa vazia e uma carta de despedida sobre a mesinha onde entrelinhas lia-se: Assassina!
A história compôs uma nova canção. E eu a toco. Com uma viola na mão e o passado na melodia, a acompanho pela calçada sob as luzes amareladas dos postes. Ela soluça, tropeça e se apoia na parede para não cair. Mas ela está caindo. A cada nota de minha melodia, a cada viagem de sua memória ao passado, a cada lágrima que rola gritando o nome de seu filho morto, ela está caindo.
Chega a sua casa. Abre a porta na terceira tentativa. Suas mãos tremiam. As pernas cambaleiam. Aquela porta não era a entrada de um lar, era sim o portal para um mundo vazio. A louça para lavar, as garrafas vazias espalhadas pela casa e uma porta que há anos não ousava abrir. Essa noite, guiada por minha canção, ela a abriu. Parou no umbral. Observou a caminha ainda desfeita e sobre ela o pijama de ursinho amarrotado, ficou da mesma maneira em que foi jogado quando seu dono o tirou. Olhou os brinquedos espalhados pelo chão. Os cadernos com rabiscos multicoloridos de seu pequeno Picasso. Um talento nato. Pintava-lhe com maestria um sorriso nos lábios. Ele se foi, e com ele, as cores também faleceram.
Eu toco outra nota.
Ela caminha até a cozinha e retorna com uma nova garrafa. Um copo não seria suficiente para afogar sua dor. Ela bebe no gargalo. Quase meia garrafa n’um único gole. Seu filho lhe sorri do retrato ainda pendurado na parede do quarto. Um convite ao fim da solidão.
Com a viola na mão eu acelero o ritmo da canção. Me entrego aos acordes. Dedilho com paixão. O clímax.
No armarinho do banheiro que ela abre sem se olhar no espelho está a passagem para o fim. Remédios de nomes ilegíveis, uma gilete. Opta pela gilete. A viagem é lenta, o corpo descansa. Se sente envolvida pelo abraço da paz. Sentada no corredor de fronte ao quarto de seu bebê, o sangue escorre de seu pulso levando gota a gota da vida. Antes que seus olhos se fechem para o sono eterno, ela olha uma última vez para o retrato de seu filho e sussurra quase sem forças: Estou indo, baby... Mamãe está indo...
Mas ela não irá... Assim com eu, pela eternidade ela irá apenas vagar.
Eis a nota final. A melodia se encerra magistralmente, mas não há aplausos. Novamente para mim tudo é silêncio. Novamente caminharei entre corujas e tulipas, buscando sempre uma velha história para uma nova canção.
Pois em minha alma, a música nunca para de tocar.