UM CONTO DE PROSA - Parte 02 
FINAL

E a lança atingiu em cheio a cabeça, rasgando entre os olhos com uma precisão cirúrgica, provocando uma dor insuportável, só então eu desperto de súbito, quando novamente a dor que como uma agulha espeta meu cérebro fazendo minha cabeça latejar outra vez.
- Meu Deus, que dor é essa; daí lembrei-me...maldita cachaça de banana.
Havia tomado uma garrafa com seu Beja, matuto que por um final de tarde até o anoitecer me enredou em uma prosa sem fim, minha curiosidade por histórias as quais gosto de escrever, acabou por me envolver em um conto sobre um ser mítico de nome Curupira, que aqui nestas redondezas os moradores conhecem por Pé-Virado.
Os flashes em minha cabeça agora começavam a se organizar juntamente com o aliviar da dor latejante que a pouco sentia.
Despertei por completo a me perguntar, onde estaria, que quarto era aquele, uma caminha estreita e dura, local pequeno sem janelas e pouco ventilado, me levantei, ainda estava vestido, camisa aberta até o peito, à gravata havia sumido, mas ainda estava com as calças e de sapatos, levantei e caminhei até a porta, girei a maçaneta oxidada e a porta foi se abrindo com um chiado estridente de dobradiças igualmente enferrujadas, uma luz fraca foi invadindo o ambiente, quando sai do quarto, reconheci o lugar, a porta dava para um pequeno corredor, que de um lado tinha um banheiro e noutro um quarto que servia de pequeno depósito para o Bar do Osmar, as lembranças ficaram mais claras, depois que exagerei na cachaça sem nada ter comido o dia todo, fiquei meio tonto e o Caboclinho filho do falecido Osmar não havia me deixado sair para a estrada e dirigir àquela hora após ter bebido, me aconselhou a usar o quartinho para um rápido cochilo, mas que horas seriam, quanto tempo já teria se passado desde as 18h00min quando os sinos tocaram a saída estratégica e desconcertante do seu Beja sem terminar ao certo a história e me deixando com cara de bobo.
Andei até o fim do corredor onde uma cortina surrada dava para o pequeno salão do bar, entrei e encontrei o Caboclinho do qual não sabia o nome, mas, que atendia pelo apelido de Nino.
Nino já estava em preparativos de fechar o Bar quando se virou e me viu, com seu sorriso simples e franco me olhou e já foi emendando.
- Então doutor melhorou da bebedeira já...completando com um risinho debochado, respondi que estava com um pouco de dor de cabeça, mas me sentindo melhor, perguntei que horas eram e ele me respondeu que passava das 22h00min já, eu havia dormido por 4 horas, precisava ir embora imediatamente, não tinha remarcado a reunião, nem ao menos ligado para casa.
Agradeci então toda a gentileza do Nino, fui por fim aconselhado por ele a seguir pela pequena via em frente, que após passar o morro da ferradura, seguindo uns 15 km, sairia novamente na rodovia a qual me levaria ao meu destino.
Então me despedi dele agradecendo-o novamente, e só então reparei em algo que não havia percebido de inicio, o Nino aparentava bem mais idade do que de fato eu tinha imaginado anteriormente, um olhar mais sereno do que o moleque que vi nele quando entrei no bar, sei lá, deve ser ainda um pouco do efeito da cachaça.
Sai do bar, atravessei a via e fui em direção ao meu carro que estava estacionado na parte mais larga da rua, o abafado sufocante do final de tarde tinha sido substituído por uma névoa fria e densa, o céu escuro de poucas estrelas e a lua minguante entre nuvens se escondia, embarquei, liguei o carro e fui adiante pela rua estreita não pavimentada, ao chegar à curva que se acentuava a direita pude reparar melhor na igrejinha que no platô ao alto se via ao longe, agora mais de perto ela me pareceu bem diferente, ao invés de uma, eram duas torres altas e bem mais imponentes do que tinha visto, lembrava inclusive a igreja matriz de minha cidade natal, estranho isto, mas a cachaça devia ainda estar em meu organismo, após a curva continuando por alguns quilômetros cheguei à encruzilhada e lembrando a explicação do Nino, sabia que devia pegar a esquerda e seguir em frente, foi o que fiz e logo reconheci a placa sobre um portal que tinha um trevo verde entalhado na madeira e apontava a entrada do sítio, a estrada continuava estreita e apenas a iluminação dos faróis do carro a clareava o que impedia de ir mais rápido, apenas cerca de 60 km/h, logo após cerca de 4 km vi a ponte que se estendia sobre o rio da figa, apesar de estreita era relativamente longa a ponte, acelerei um pouco mais para alcançar e transpô-la o mais rápido possível, uma sensação estranha de calafrio me tocou a nuca, quando de repente em uma fração de segundo antes de chegar à cabeceira da ponte, algo atravessou em frente o carro, não houve tempo de identificar o que de fato era, apenas a reação instintiva de tentar frear e girar o volante para a esquerda, o carro rabeou no chão de terra, o que fez entrar quase de lado sobre a ponte, tentando controla-lo girei novamente o volante agora para o outro lado, no que me fez colidir contra o baixo parapeito, seguindo com parte do rodado sobre ela e outra parte sem solo sob as rodas, assim foi por alguns metros até parar totalmente, atordoado após ter batido forte com a cabeça no vidro lateral, senti que estava com o carro dependurado no parapeito sobre o rio da figa, consegui soltar o cinto de segurança e abrir a minha porta que estava para o lado de dentro da ponte, sai cambaleando e ainda tremulo pelo susto, estava mais ou menos na metade da travessia, e a visão do carro sobre o parapeito como se fosse uma gangorra me aterrorizou, a altura da queda até o rio não passava de seis ou sete metros, mas o fato de não saber nadar por certo sendo o rio fundo seria fatal.
Desviei estes pensamentos e tentei focar no que precisaria fazer naquela situação, não conseguiria tirar o carro na posição que ele estava dependurado sobre a ponte, voltar até o sítio seria uma caminhada de mais de uma hora e não sabia se encontraria alguém lá também, então lembrei que logo a frente chegaria ao morro da ferradura, local segundo Nino era o único onde o celular alcançava sinal completei a travessia da ponte e fui caminhando em frente e olhando o visor do celular e se nele apareceria o sinal salvador.
Conforme caminhava, sentia muita dor no corpo, um pouco de dificuldade para respirar, um aperto no peito e a cabeça também me incomodava devido a pancada no vidro, não senti nenhum corte ou fratura aparente, apenas um desconforto que dificultava os meus movimentos, cerca de 15 minutos de caminhada, pude ver a direita um aberto que se fazia no baixo mato que havia paralelo a estrada, percebi que ali começava a picada que iniciava ao pé do morro da ferradura, olhei para cima e com o pouco de claridade que a lua produzia, pude ver o morro que se levantava a minha frente, o morro da ferradura, local de muitas histórias, por conta delas eu ainda estava por aqui e nesta situação de desespero, machucado, sem condução, sem a quem recorrer e sem telefone, morro da ferradura, terra do Pé-Virado, casa do Curupira, não acredito ainda que tudo isto por conta de um conto de pinga ou de dois dedos de prosa; olhei para o visor do celular, já eram 23h15min, mas nada de sinal, olhei novamente para o morro e identifiquei próximo do seu cume algo que me pareceu uma antena, possivelmente de alguma operadora de celular e por isto ali era o local que melhor se tinha sinal, resolvi então seguir um pouco pela picada para subir e ver se alcançava sinal para ao menos ligar para algum serviço de emergência ou para acionar o seguro do veículo, não me restavam muitas alternativas, comecei a seguir pela trilha que era um pouco íngreme, mas de fácil acesso, cerca de 150 metros acima e nada de sinal ainda, estranho tão próximo de uma antena e justo quando mais se precisa nada de sinal, continuei usando o flash da câmera do celular como lanterna e segui mais um pouco a cima, onde a trilha se estreitava , tinha um leve declive e se inclinava para o lado em algo que mais parecia um carreiro que adentrava a mata olhei o celular e a desgraça sem sinal, resolvi voltar, teria que enfrentar a caminhada até o sitio do Trevo Verde, era a única alternativa que restava, quando me virei para retornar pela picada vi a alguns metros de mim um vulto na trilha, não consegui identificar exatamente o que era, tinha a altura de um homem baixo, cerca de um metro e meio de altura no máximo, possuía braços fortes, a cabeça era protuberante, parecia ter uma cabeleira que apontava para o céu ao invés de cair sobre os largos ombros, não conseguia ver roupas nele apenas algo que lembrava uma saia de palha, desci mais o olhar incrédulo do que me ocorria e sem acreditar fitei seus pés, sim seus pés, só podia ver o calcanhar, eles eram virados para trás, pensei, isto é um sonho ou bati o carro e morri, só pode, não havia explicação razoável para aquilo, eu a poucos metros do Curupira, fiquei mudo, não podia voltar para a estrada, pois ele estava entre mim e ela e a minhas costas apenas mata fechada e um pequeno carreiro a adentrá-la, quando pensei em proferir algo ele se antecipou e gritou feito um bicho, o som foi estridente como um guincho de animal ferido, me doeu nos ouvidos o que me fez sair do transe, logo após o seu urro, ao seu lado surgiu um enorme porco do mato com grandes dentes que saiam pela mandíbula, só então percebi a lança que aquele ser inimaginável até então, trazia na mão, procurei sem muito sucesso encher os pulmões de ar, mesmo sem conseguir ver muita razão na minha atitude, mas foi tudo que me ocorreu no momento, era fugir, correr o mais rápido possível, mas o único caminho me levava mais e mais para dentro da mata, mesmo assim foi o que fiz, sai em disparada pelo carreiro sem enxergar muito além de alguns metros, felizmente meus olhos já haviam se habituado um pouco com o escuro o que me fazia conseguir identificar o carreiro entre as arvores, corri o máximo que pude o que não foi muito também, já me faltava ar nos pulmões e meu corpo doía muito, parei encostado em uma arvore, e ofegante tentei identificar algum som que pudesse demonstrar se o Pé-Virado havia me seguido, a principio não ouvi nada além de poucos sons da mata, pensei o que faço agora, voltei a olhar o celular, sem sinal, quando a luz do visor se apagou parecia que toda a mata ganhara vida, o barulho se intensificando por todos os lados, era como gemidos e guinchos de animais, não sabia para onde correr, apenas fiquei encostado na arvore esperando o que aconteceria, então a lua que parecia de pouco brilho surgiu entre as nuvens e clareou um raio maior de área ao meu redor, então pude ver saindo da mata e vindo em minha direção o ser que ainda me parecia ser ilusão ou sonho.
Vinha montado sobre as costas do grande porco, a alguns metros de mim ele desceu da sua montaria e com a lança na mão a ergueu e apontou em minha direção, ele não emitiu nenhum som, mas algo tocou a minha consciência, então dentro da minha cabeça eu o ouvi dizer.
- Caçador, voltaste aqui e sabes que é proibido caçar em meus domínios, pagarás com sua vida todas aquelas que tirastes de minhas matas, - sem precisar falar eu consegui responde-lo, então eu disse.
- Não sou caçador, sou vendedor, nunca matei animal algum, nunca disparei uma arma.
E ele respondeu.
- Tens em sua herança, está no seu sangue e pagarás com ele o sangue que já foi derramado por outros.
E sem mais explicações ele caminhou até mim, as forças me deixaram de súbito, minhas pernas se dobraram, caí como se tivesse sido atropelado, ele veio até o meu encontro e encostou a ponta da sua lança em minha testa, senti então que seria o fim, fechei os olhos, aquilo que é normal ouvir de todos que passaram por momento de encontro com o fim derradeiro, transcorreu numa fração de segundo pela minha mente, lembranças, tudo que fiz e o que não tive tempo, aquilo que disse ou não pude dizer, e tudo que pensei que ainda faria daquele momento em diante, quando senti a pressão da lança a começar a rasgar a pele, cortar a carne ouvi um zumbido seguido de um estalo alto como se fosse um tiro, abri os olhos e sem acreditar a figura do Curupira estava em pé a minha frente, havia largado a lança e em seu peito um buraco que o transpassava de lado a lado, então com um urro feroz o meu algoz simplesmente desapareceu como se nunca houvesse estado ali e a mata toda se silenciou, consegui puxar um pouco de ar e respirar fundo, quando ouvi uma voz que disse.

– Você está bem, já pode ir, aquela voz, aquele timbre, nem grave e nem agudo, uma voz não muito alta, mas que conseguia atenção, suave, proferindo lentamente as palavras, mas que transmitia força, um tom sério quase austero, era familiar esta voz, então vi o vulto que veio até mim, usava um chapéu e tinha uma espingarda pendurada no ombro, se abaixou e a luz da lua clareou um pouco o seu rosto, pude ver os olhos claros, pareciam azuis de um tom acinzentado, um bigode fino sobre os lábios, consegui juntar forças para dizer.
- Não pode ser você, e ele apenas sorriu de forma contida, mas cativante e sincera, então me disse.
- Agora vai, você está em segurança, olhe para a fada, ela vai te mostrar o caminho.
Ao seu lado surgiu uma pequena menina com asas, sua beleza era angelical, lindos cabelos cacheados de um tom louro dourado, um olharzinho meigo e gentil, seu sorriso era aberto e contagiante, tudo nela me lembrava alguém, ela veio como se flutuasse, aproximou-se e com uma delicadeza indescritível tocou com seu dedinho a ferida que a lança do Pé-Virado causara em minha testa, neste instante fui envolvido por uma onda de calor que me abraçou e tirou todo o peso da dor que eu sentia, fechei os olhos por um instante para me regozijar naquela sensação, quando reabri meus olhos, olhei para o céu e a lua agora não era mais minguante e sim uma lua cheia, linda e brilhante, ela começou a brilhar mais e mais, e como se estivesse a se aproximar de mim, fui engolido pela claridade, então por um segundo a luz me cegou e quando consegui voltar a ver percebi ao meu redor a legião de pessoas vestindo azul completamente e as lâmpadas redondas do centro cirúrgico, eram médicos e enfermeiras, eu estava em um hospital.
Acenei levemente para o médico que estava a minha cabeceira, ele sorriu e afastou a mascara de oxigênio que estava em minha boca, então murmurei.
- O que aconteceu, onde estou?
Ele respondeu, - Sou o doutor Lino, você está no Hospital Osma R. Ditôz, você sofreu um gravíssimo acidente de carro.
Acenei novamente, queria mais explicações, ele sorriu de volta e completou.
-Você teve muita sorte rapaz, na serra da Ferradura, você colidiu com um caminhão da expresso Curupira, seu carro saiu da pista e caiu em um despenhadeiro, mas ficou preso entre duas figueiras o que evitou cair cerca de 50 metros até o rio, o pessoal do resgate teve muitas dificuldades para conseguir tira-lo do carro, por vezes acharam que não conseguiriam, mas há um socorrista que jura ter sentido que a cada deslize do carro, parecia ter mais alguém a segurar você para não deixa-lo despencar de dentro do veículo, segundo ele, você resmungava o nome de um anjo, Rafael, Gabriel, Miguel, não sei ao certo.
Disse então.
- Era Miguel doutor, foi ele que também me socorreu, e esbocei um sorriso, o qual ele novamente retribuiu, em seu jaleco eu vi bordado ao lado do seu nome a figura de um trevo verde, ele percebeu o meu interesse no trevo e me disse que era um talismã, para que ele tivesse além da capacidade e conhecimento um pouco de sorte para em casos extremos conseguir salvar mais vidas.
Então ele completou.
- Mas não foi só isto que te ajudou hoje meu jovem, seu anjo da guarda estava de plantão.
No que eu com o pouco de forças que consegui juntar, disse.
- Sim doutor foram vários, entre eles um anjo valente e caçador, o anjo Nardo, meu querido anjo e papai Bernardo!
No que o médico sorriu e assentiu com a cabeça e completou.
- Foi uma longa noite, agora descanse.