Um estranho dentro de mim
“Um estranho dentro de mim”
Acordei meio tonta ainda, não tinha ideia do que diabo havia acontecido comigo, por motivo desconhecido eu estava vendada, e como um “cego em tiroteio” me sentia perdida ali, num espaço frio, pelo meu infravermelho rarefeito sentia que estava num lugar grande, espaçoso, mas sem ideias de onde era, aliás eu não sabia quem era eu.
Tentei desesperadamente mexer as mãos e os pés, numa tentativa pífia de me levantar, parecia que eu não mais tinha meus pés e mãos, no máximo eu mexia um compacto desses... Era atordoante pra mim, não saber de nada, tentei sentir o cheiro do local, e o que pro meu nariz parecia familiar, para minha alma soava como um odor desagradável, ruim.
Passaram algumas horas e eu tentando me conhecer ainda, me localizar no mundo, aquele mundo que me soava bucólico, diferente de tudo que eu tinha sentido, mesmo que eu não lembrasse muita coisa, tentei usar meu cérebro para conectar lembranças, mas nada me veio à mente, para mim a única certeza é que algo estranho me acontecia, e como sempre fui teimosa, queria saber o que acontecera.
Mais do que de repente sinto na minha pupila que uma luz a atingia, alguém adentrara aquele recinto que eu sozinha ocupava, era um bom sinal, assim eu conseguiria dialogar, saber o que me acontecera, porém fui surpreendida por mim mesma, tentei com todas as forças manusear minha língua, meus lábios para saírem palavras, mas o que ouço é um triste e rouco “Muuuu”.
No primeiro momento pensei em delirar, mas como se Deus quisesse me dar um recado sou abatida por um ferrão quente em minhas costelas, a dor veio de rompante, tentei gritar, e agora saía de minha boca um “mu” triste e solitário, após esse momento tudo começava a fazer sentido, meus compacto de dedos, meu cérebro deficiente, meu mugido, acho que eu sou uma vaca.
Depois da hora da marcação, a venda foi retirada, e comecei a me olhar, e me admirar, era uma vaca bonita, daquelas que sempre lhe renderão litros e litros de leite, e que são disputadas a tapa nos leilões chatos da TV. Era uma vaca malhada, e parece que quanto mais eu voltava à tona, minha consciência também era recuperada, em minha alma tinha algo que ainda flamejava, e isso não era característica de vacas holandesas.
Fui começando a me adaptar, mesmo que não gostasse daquela vida, ainda me acostumava ao cheiro de estrume por todos os lados, eu era uma vaca especial, vai ver que eu era uma daquelas vacas sagradas da Índia, opa mais uma lembrança me escapava, eu tinha conhecimentos da Índia, e uma vaca nunca saberia disso.
Gostei de perceber que eu tinha algo a mais do que tetas e patas, aliás, é péssimo ser dotada de tetas, eu nunca alcancei uma verdadeira privacidade, todo dia sou apalpada, ordenhada por homens estranhos, e isso diferente das outras vacas me deixava encabulada, mas não podia reclamar, o máximo que fazia era um “mu” mais triste, com requintes de ódio, mas eles nunca entenderiam, eram humanos, de braços e pernas, que articulavam muito bem seu cérebro e não exitariam em maltratar animais, até porque eles são do topo da cadeia alimentar, opa mais um pensamento fugia, e cada vez mais minha chama humana se acendia na alma, eu já fui humana.
Minha missão agora era descobrir como parei ali, num estábulo qualquer, fedendo a estrume, sendo apalpada por mãos roceiras e o pior, sendo uma vaca que sabia que era humana e por isso não se acostumava com a vida campestre. Os dias se passavam miseráveis para mim, como eu iria socializar com outras vacas se eu tinha alma humana, me perguntava se vacas tinham almas, acho que não, elas nunca se inquietavam, e quem tem alma nunca se acomoda.
Parei um dia para tentar uma reflexão interior, pensava no que eu tinha feito antes, como fui parar ali, mais uma vez essa dúvida me rondava, juntava todos os esforços possíveis para um cérebro bovino, e tudo o que eu pensava era grama... Quando chegava a noite eu pensava em rezar, pedir ajuda a única pessoa que poderia me ajudar, mas não lembrava a oração, mas acho que meus esforços valeram a pena, até que uma noite consegui sonhar.
Sonhei o que poderia ser um pesadelo, se eu fosse uma vaca, eu era uma mulher bonita, feliz, e estava num churrasco, toda aquela aura de felicidade rondava o ambiente em que eu estava esse sim era o cheiro normal pra mim, toda aquela grama verdinha e eu sem vontade de comer, mas aqueles bifes na chapa me arrancavam suspiros só de pensar, eu me sentia normal, num pesadelo bovino, e o pior, eu era uma vaca! Eu estava vestida com um belo vestido floral, daqueles bem fresquinhos para um dia ensolarado, eu era uma mulher aparentemente normal, até que meu sonho humano se torna também um pesadelo humano, minha memória é resgatada, e fui levada ao dia em que morri naquele mesmo churrasco eu fui morta, um ataque fulminante, as vacas teriam vibrado, pois mais um onívoro havia sido morto.
Acordava de supetão, mais uma vez para ser pesada, tiravam todas as minhas medidas, enquanto isso, meu cérebro humano matutava tudo aquilo que tinha acontecido na minha vida passada, eu tinha morrido humana, bonita, esbelta, e hoje era uma vaca, o que será que acontecera para eu estar aqui? Talvez eu tenha pedido a Deus, aliás, essa era a única explicação, acho que eu pedi para ser apreciada por alguém, apalpada por homens másculos, e foi isso que me aconteceu, hoje sou uma vaca que dá leite aos carentes, sou apalpada, acho que devo me considerar uma pessoa ingrata, pedi a Deus tudo isso, e hoje me sinto triste, sou uma vaca rebelde, vai ver que foi castigo divino, me trancar num corpo de vaca, tendo eu um cérebro desenvolvido.
Comecei a perceber coisas engraçadas sendo uma vaca, me lembrei de ter uma fazendinha e que eu tratava de modo mimoso as minhas vaquinhas, e hoje sendo uma acho ridículo o modo que tratam os animais com aquela voz frágil, sou uma vaca holandesa com muito orgulho, não gosto de muita conversa com humanos, tenho inveja deles, quem me dera que Deus me desse uma chance de trocar com alguém.
Minha vida passava lentamente, eu era vítima de um pedido malfeito, e tudo o que eu mais desejava agora era morrer, de uma morte rápida, vai que dessa vez eu tivesse a sorte de acordar como um humano novamente, ou sei lá, um animal melhor né? Um golfinho, ser inteligente, que cria laços com outros, ou quem sabe no fundo eu desejo ser um cachorro desejo ter um dono para cuidar de mim, me dar carinho... Ah que se dane, eu quero mesmo é ser inteiramente um animal, me livrar do senso crítico de ser humano, dos luxos medíocres de ser um ser pensante.
Lá vinha um humano diferente em minha direção, esse parecia menos másculo, no entanto era mais arrumado, seu cabelo caprichadamente para trás, muito bonito, era um senhor mais velho, de óculos escuros, era o típico dono do local, e esse provavelmente só aparecia para momentos especiais, e eu morava só ali, então eu era o motivo especial, meu pedido era atendido, eu ia ser morta... E virei bife, virei alcatra, maminha, fígado, tapetes de couro, hambúrgueres eu fui despedaçado em carnes, agora eu estava a merçê dos preços do supermercado.
O destino me levou para uma casa qualquer, uma churrasqueira qualquer, onde as pessoas comemoravam, bebiam, assavam-me aos poucos e cantavam “Vaca Profana”, irônico não? Não mais do que minha vida sempre foi, aliás, tudo na casa era feliz, menos a dona, que estava em seu quarto chorando, raivosa, xingando todas as mulheres de vacas, e pra mim ela seria mais uma vítima da ingratidão de Deus, mais uma colega minha, uma Mimosa da vida, uma vaca holandesa.
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