O Velho e o tocador
Sacou Aquino de seu violão e foi caminhando por aquela estrada de terra batida. Muita poeira levantou daquela caminho, entrando nos seus olhos e sapatos. No entanto, nada disso foi suficiente para que desviasse sua atenção.
Andou por horas, debaixo de um sol quente e infernal. Ia se aproximando de um casebre com paredes rachadas e teto de zinco, quando saltou em frente dele um preto velho.
Chapéu de palha, descalço, calças dobradas pela canela fina e escura. Um cachimbo apagado na boca seca. Ficou fitando Aquino por alguns minutos, mãos na cintura, costas curvas, olhos fundos. Soltou uma breve risada, que mais parecia um grunhido de algum animal selvagem. Depois, cuspindo para o lado, voltou a cabeça em direção a Aquino, e falou:
- "Então moçu veio pra te fartura com us dedo? Hihihi, moçu num sabe que já tem tudu qui precisa bem dentro de peitu?"
Aquino escutou atentamente as palavras do Velho, mas disse que a “tristeza e solidão” que sente fazem com que ele não tenha desenvoltura em seu instrumento. Abaixou a cabeça, olhando para as mãos calejadas, e logo as lágrimas começaram a rolar pelo seu peito. O preto, vendo aquela cena toda, voltou ao diálogo:
- "Moçu fica de brincadeira co´a vida, encharcando e disperdiçandu talentu de moçu bom. Vai passar tempu, a vida vai fica pra trás. Moçu, é “tempo de amor”, num joga talentu fora, joga não. Vai consegui faze cosa boa. Teu paçeru Marcus vai ajuda. Mas cuidado co caminho."
Aquino continuou chateado, e insistia em dizer que não podia mais continuar com aquilo. Iria abandonar o instrumento. Não queria mais saber de musica, pois de nada adiantava colocar seus sentimentos no violão. Ninguém queria saber de suas dores.
Então ficaram os dois lá. Aquino se lamentando pelas suas tristezas mal interpretadas pelos ouvintes, e o Preto na “consolação”, desfilando todo o seu vasto vocabulário de ajudamento. Passou-se um tempo razoável e ambos se calaram por completo. O sol ainda estava brilhando, mas nada comparado ao início do dia, quando soltava “labaredas” pelos seus braços vermelhos e brutais.
Depois de algum tempo, o Preto Velho chamou Aquino pra dentro do casebre. Lá, tudo era rústico demais. Tronco de madeira aparentando cadeiras, um cortina branca de tecido já roto, duas prateleiras com potes diversos. Dentes, temperos, folhas e ervas secas, muita variedade. Na única parede que não estava tomada pelo mofo havia um modesto altar e, ao lado, um baú de madeira bem conservada.
O Preto falou para Aquino se sentar, e foi logo atendido. Ofereceu um cigarro ao visitante que se recostou numa parede defronte ao altar. O Velho sentou no chão mesmo, não sem antes pegar um objeto de dentro do baú. Então, ao lado de Aquino, ele aproximou-se ao rosto do rapaz e falou:
- "Agora moçu pega isso que ta na mia mão", e estendeu o braço em sua direção.
Aquino não distinguiu o objeto na mesma hora. Pegou em suas mãos e logo viu algo brilhar entre seus dedos. O Preto Velho havia lhe dado um “cordão de ouro” e advertiu:
- "Moçu tocador vai canta pra Xangô, Ossanha, Iemanjá, Pedra Preta. Daqui pra depois num vai te desesperu, nem tristeza. Mas moçu precisa para de joga talentu pru´alto. Si non vai acaba triste memo."
Aquino ficou sem reação, tentando refletir sobre tudo aquilo. O cordão, os conselhos. Levantou e foi agradecer ao Preto, quando de trás do altar surgiu o Exú. Cara fechada, pernas fortes, um camisa branca contrastando com sua enorme cartola negra, cor do céu de meia noite.
Preto Velho ficou num canto, sem intrometer-se na cena. Aquino fitou o Exú por algum tempo, sem medo, nem desconfiança. Sabia que uma hora ele apareceria, cedo ou tarde.
-"Hehehe", riu estrondosamente a Entidade. "Seu moçu aceitou cordão de Velho, mas sabe que pra consegui o quequer, tem que fazê reverênça pa´mi."
Aquino não pestanejou e, sentindo uma grande força emanando de si, sentou-se num toco de árvore que encontrava-se próximo ao Preto e começou a dedilhar alguns acordes.
O local ficou em completo silêncio, apenas as notas tristes do violão é que ecoavam no ambiente. Uma, duas, 15, diversas sequências de acordes e tons. Foi tocando, com os olhos fechados. Cabeça baixa e corpo balançando. Na sua mente, abriu-se a imagem do infinito. A galáxia, negra como os olhos do Exú, explodiu em cores as mais diversas. E após um imenso choque de luzes, eis que surgiu o Sol, espalhando seu calor por todas as direções.
Parou, dedos exaustos, mão doloridas. Na sala estava tudo escuro, como na galáxia de sua visão. Tentou procurar o Preto, a Entidade, mas nada encontrou. No entanto, escutou a voz do Velho, bem próxima a ele:
- "Moçu ta prontu pa segui. Ecuta´o som?" Aquino ouviu, bem ao fundo, uma espécie de choro, um soluço. O Velho disse, então:
- "'Esse é o lamento do Exú'. Moçu tocou a alma dele e, por isso, stá preparadu pa i´efrente."
Aquino saiu do casebre. Olhou para frente e viu a estrada de terra pela qual havia vindo. Soube, naquelo momento, que aquele era o único caminho que poderia trilhar. Arrumou o violão às costas e pegou trilha. Sim, estava pronto.