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Pelo menos cinco xícaras não quebraram. Foram as únicas coisas que sobraram da mudança. Finalmente eu resolvera me mudar, carregar meus pertences pra cidade grande, onde as coisas realmente aconteciam. Onde eu morava, vivia sendo ameaçado pela vizinhança, que tinha tipos sinistros e até envolvidos com rituais satânicos. Eu via as evidências, embora eles achassem que eram discretos. No meio do caminho, o caminhão para e o motorista pede pra buscar, lá atrás no baú, uma lanterna. Entro e ouço, lá na frente, gritos, pancadas, e as portas são trancadas. Acho que foi um assalto, devem ter espancado o pobre Alfredo. E eu aqui atrás, não devem ter me visto. Seguimos andando. Dez minutos depois, um estrondo. O caminhão freia violentamente e vira. Bato nas paredes do veículo umas dez vezes. Capotamos. Mas o estrondo na rua segue por um bom tempo. Parecem bombas. Mal consigo me mexer. Fico inconsciente.

Acordo e vejo a luz do sol entrar por uma fresta. Saio do caminhão e vejo os últimos raios de sol no horizonte. Ninguém na cabine. Estou num charco. Anoitece. Um breu, não acho a estrada. Céu encoberto. Caminho com a vegetação na altura dos joelhos. Desisto. Volto pro caminhão. Descanso.

Vejo claridade. É a lua cheia, enorme. Mas o que vou fazer? Espero. Mmm, dor de barriga. Vou fazer no meio do charco, azar. Vou me limpar com o quê? Ah o papel que enrolava os objetos da mudança. É aí que reparo, no escuro, que só encontro os papéis enrolando pedaços dos objetos. Tudo quebrou. Tudo. Até as coisas grandes. Estantes. Sofás, tudo em caquinhos, como pode? Até as partes acolchoadas estão aos pedaços. Parece que passaram à força por uma rede de malha fina. Só se fosse uma rede de aço ou então laser. Menos as xícaras que herdei da minha avó. Estranho. Vou lá extirpar de mim o que me aflige. Enquanto visto as calças, lembro do Alfredo, desaparecido. Tive um pato chamado Alfredo uma vez. Todo preto. Cresceu e um dia fugiu voando. Desapareceu também.

Amanhece. Mas a luz do dia está diferente, alaranjada. Ao longe vejo colunas de fumaça erguerem-se a quilômetros de altura. Resolvo seguir em direção a elas. Caminho o dia inteiro. Avisto um vilarejo. Não, é só uma casa. Mas não reconheço a região, não tenho a mínima idéia de onde esteja. Estou faminto. Fico em cima de um morro, atrás de uma pedra, observando. Horas se passam e nenhum sinal de vida. Espere, um barulho. Uma porta abrindo. Lá de dentro sai um careca, parecido com meu antigo vizinho do apartamento de baixo, aquele que certa vez reclamou por causa que eu toda semana mudava os móveis de lugar. Um idiota. Ameaçou-me, como os outros por outras razões. Deviam estar todos mancomunados. Olha esse careca agora, roupas estranhas, suspensórios coloridos e um objeto na mão, parece uma revista. Ele tira algo do bolso, mexe minuciosamente com os dedos e depois abre a revista e coloca algo no meio. Pode ser um álbum de figurinhas. Será? Nunca completei um álbum de figurinhas. Uma vez quase. Só faltaram umas 3 ou oito. Ele sobe numa monareta e se afasta da casa. Fico em dúvida se devo ir lá. Fico inquieto e arranco uma pedra do chão. Embaixo tinha uma minhoca, que se contorce agitada. Lembro da piada: sem braços pra me coçar, blá blá blá. Deixe que se contorça. Travo um diálogo imaginário com ela, pra saber se o careca vai demorar, mas a minhoca não me garante nada. Tô com fome. Resolvo me aproximar da casa.

Passo a passo, imagino se tem mais alguém lá. De repente mais um estrondo. O próprio ar estala com uma eletricidade que arrepia até os pêlos pubianos e faz meus dentes rangerem. Deito no chão, enquanto vejo um rasgo no céu brilhar com luzes coloridas. Meus ouvidos sangram. Deve ser isso que houve na outra noite. Mal consigo ver, mas sou capaz de distinguir uma grande nuvem em forma de cogumelo no horizonte. Mas a copa do cogumelo era estranha, com quadradinhos, como se tivesse janelas. Parecia uma casinha. Dentro dela vislumbro um brilho vermelho e vários pontos azuis. Espero pela onda de choque, mas só vejo pequenos rastros azuis passando por mim, super velozes. Fecho os olhos, estou tonto. Várias coisas me vêm à mente: médicos, paredes brancas, minha mulher indo embora, um chafariz e um elefante, uma avião e uma igreja, duendes doentes, correntes correndo, um prédio em ruínas, poeira, minha pele está se descolando...ah! Era só o vento fazendo minha roupa farfalhar e se debater! Um brilho forte! Uma luz vem em minha direção e então tudo fica azulado por uns instantes, até que começa lentamente a voltar ao normal, mas com um ruído de resfriamento, um chiado.

Sigo em direção à casa. Sinto cheiro de café recém passado. Nunca bebi o tal descafeinado. Nunca, nunca, só uma vez! Entro, vejo o bule. Abro. É café. Procuro um recipiente. Nem um copo, nada. Que coisa. Não tem nem um objeto na casa. Nenhum utensílio, apesar das evidências. Uma mesa, um bule, um fogão a lenha, e é só isso, os outros dois cômodos estão vazios. Estranho. No quarto, onde deveria estar a cama, um triângulo marcado no chão de terra. Pode ser um resquício, um pedaço que sobrou de um pentagrama. Lembro de meus ex-vizinhos e seus rituais. O cheiro do café me dá mais fome.

As xícaras. Vou no caminhão buscar. Vou levar o dia todo. Azar, vou lá buscar. Corro. Piso na minhoca, que fica se contorcendo mais ainda. Entro no charco, com medo de me perder. Cadê o caminhão? Ah, ali, mais à direita. Sempre fui ruim de noção espacial. Droga, pisei na minha “obra” de ontem à noite. Entro no veículo. Várias e várias caixas. Onde estão as xícaras? Ali no canto. Levanto a caixa e dou de cara com um pato no ninho. Pata, melhor dizendo. Igualzinha ao sumido Alfredo, toda preta.

Outro estrondo, sou jogado longe, bato a cabeça. Meio zonzo, tento levantar. As portas do baú se abrem. É o Alfredo. O motorista, não o pato. Ele me chama, ouviu um barulho e demorei, por isso veio ver se eu estava bem.

Seguimos viagem. Não falo nada. Ele quer parar no próximo restaurante pra tomarmos um cafezinho. Olho pra ele desconfiado. Num solavanco, o porta-luvas se abre. Cai de dentro um álbum de figurinhas.

“Isso é do meu filho, esqueceu aí.” Por que ele se preocupa em explicar? Reparo em sua roupa. Por baixo da jaqueta, enxergo uma tiras coloridas. Seria um suspensório? Não me aguento quando ele passa a mão na cabeça e diz: “Bá, tô ficando careca.”

Passou dos limites! Dou-lhe um soco e ele freia, me xingando. Saio e corro pela estrada. Agora tinha certeza que aquela luz azul e a casinha de cogumelo eram de algum smurf, talvez o Vaidoso, com a florzinha no gorro e o espelho na mão, direcionando o reflexo do sol nos olhos da gente, só de sacanagem. Lógico, era isso!

Cássius Rodrigues
Enviado por Cássius Rodrigues em 19/08/2013
Reeditado em 21/08/2013
Código do texto: T4442390
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