O Delírio de um Psiconauta
— Acorde! — uma voz diz dentro de sua cabeça.
Ao abrir os olhos o mundo movimenta-se em câmera lenta, distorcido como num espelho torto. Você assusta e se pergunta se está dentro de um sonho. Ainda possui consciência para questionar a realidade.
— Não! Isto é real. Isto é a substância imaterial dos sonhos. Isto é o que os sonhos são feitos. Você está dentro da essência dos sonhos — estoura a voz dentro de sua mente, desaparecendo lentamente em ecos que se afundam no silêncio. Você consegue sentir os ecos mergulhando no silêncio como se estivessem afundando dentro de uma piscina de óleo.
Você limpa os olhos na esperança desesperada de apagar tudo que está vendo, e por alguns segundos o mundo tangível volta a ser como era, mas logo o pesadelo volta desmanchando a realidade em fluídos que oscilam como ondas do mar. Os móveis tomam formas ameaçadoras, grotescas, expandindo em formas absurdamente grandes, como se você estivesse vendo tudo através de uma lupa. Cada segundo é uma sensação profunda de um ataque brutal. Os objetos do quarto parecem caricaturas inanimadas; tudo em todos os lados zomba de ti desdenhosamente. Você se sente mergulhado num oceano de informações que emana de todo o ambiente, confundindo-o com seus próprios pensamentos, perdendo-se entre o objeto e observador. Você se perde nos limites de seu próprio corpo ao ver seus pensamentos vazando pelos seus olhos, como espectros incontroláveis que se alimentam do medo. Eles se fundem ao ambiente como uma tinta dentro d'água, refletindo seu horror para onde quer que olhe. Tudo em slow time.
Nos confins do que parece ser sua mente, a voz troveja uma gargalhada sardônica, ludibriosa, alimentando o terror que cresce sem limites dentro de você. Uma sensação de auto-alienação varre teu corpo, fazendo-o perder o controle dos processos funcionais de seu cérebro. Você fecha os olhos, ou pensa que fecha, e o horror lhe devora ao sentir que não existem olhos para verem, mas somente pensamentos sobre olhos que veem. Não há como correr, não há para onde se esconder, você está preso em forma e essência do medo absoluto. Não há nenhum tempo ou razão, a sensação de eternidade cobre tudo à sua volta.
— Estou sonhando. Isto não pode estar acontecendo — você diz a si mesmo. Quer controlar o pesadelo que lhe devora. Em outras palavras, quer controlar a si mesmo.
— Isto é a realidade! — oscila a voz que parece vir dos objetos, pois estes tomam formas malignas e vibram com a sonância dos sons. Desdém, malignidade e menosprezo sussurram de todos os cantos —. Sua realidade interior. Isto é o éter do qual tudo aquilo que já foi pensado é feito.
A realidade escorre perante seus olhos, enquanto você apenas assiste ao show de horrores ameaçador sem que nada possa fazer. Você estende os braços e não consegue sentir o espaço vazio, o universo parece ser preenchido de uma substância glutinosa, venenosa, que se distorce em graus que oscilam como se tudo estivesse dentro d'água. Você leva as mãos à face e estas se afundam, vazando pela nunca, misturando a si mesmo numa espécie de plasma com cores que correspondem àquilo que você chama de corpo.
Medo. Terror. Ambos os sentimentos que o preenchem, envolvendo-o à essência profunda dos pesadelos medonhos. Você se entrega ao horror e vê a si mesmo de uma perspectiva alheia, misturado em ideias e lembranças, como se estivesse dentro de uma bolha fora do tempo-espaço, preenchida com todas as suas experiências, pensamentos e sonhos.
— Isto é o que você é! — agora a voz explode através de todo o universo à sua volta —. Não tema. Bem-vindo ao pesadelo.
Você se pergunta se está morto, e aquela seria a transição. Mas não há como se fixar num só pensamento, você é tudo à sua volta, misturando sonhos com experiências vividas, ideias com lembranças de vidas as quais não sabe se viveu ou penas imaginou vivê-las.
— Você não procurou a verdade? Pois eis que ela é revelada a você. Isto é o que tudo no universo é. Isto é a totalidade de tudo que existe. Você é somente um aglomerado fluxo constante de pensamentos mesquinhos — diz a voz, trovejando universalmente.
O desespero rompe as barreiras do impossível e você se dissolve num mar de pensamentos que parecem fluir de todo o universo.
— Não! Sim?! O que é tudo isso? Deus, por favor. Ela é... Nossa aquele garot... Estou... com medo. A humanidade está... Ele tá louco. Hei, vocês ficaram sabendo de um carinha que enlouqueceu... Merda, amanhã tem trabalho. Deus, Deus, tire-me da... Eu amo e... Ele pirou de vez. Estou com medo. Sinto-me tão fe... Triste. Este é o apocalipse. Minha mãe sempre me avisou. Vocês viram aquele mendigo? Ele tá internado num mani.... Sinto muito, você está com câncer. Aids. Enfermidades. Deus, Deus, Deus! Tire-me disso! Eu te avisei meu filho, Deus existe. Esta é a punição. Quem so... Cadê meus amigos? Estamos aqui! Nada existe. Tudo existe. Estou com me... Paz. Dor. Mentiras. Ei, será que ele tá louco? Corre filho. Estou cansado. Sinto-me revitali... Desanimado. Isso não termina! Morte. Vida. Medo, estou com medo. Por quê, filho? Eu avisei pra seguir a Deus...
Afogado em milhares de sensações e sentimentos você consegue por um lapso de instante formular um pensamento coerente.
— Isto é o inferno. Não há nenhum demônio para punir. O inferno é isto; uma batalha infinita dentro de sua própria mente. Um estado de pura insanidade que o faz se perder em si mesmo. Sinto-me só. Isolado.
Para seu alívio, uma quietude invade-lhe o ser. A bolha plasmática de sua realidade continua movendo-se lentamente. Você já consegue localizar seu corpo em meio à substância glutinosa de pensamentos, embora distorcido num grau devastador. Você vê seu quarto distorcido. Fica feliz, pelo menos consegue enxergar algo coerente. O fluxo de pensamentos vão diminuindo aos poucos, acalmando-o. Você fecha os olhos, a escuridão das pálpebras lhe alegra. Uma luz aparece ante o interior de seus olhos e vai lhe puxando para dentro dela suavemente. No silêncio de seu mundo interior, sendo levado pela luz calorenta, repleta de plena paz, você entende, mediante ao amor daquela luz divina, que tudo que tinha vivido não passou somente de sua própria condição individual como ser: egoísmo. Você nunca amou nada além de si mesmo; tinha amado somente a satisfação que o outro lhe proporcionava. O mundo só existia para a sua satisfação de cobiça. Seu egoísmo tinha o mantido separado do gênero humano e lhe conduzido a um isolamento interno. Você tinha se tornado frio e cínico. Então você teve todo o universo de uma só vez para si. Mas seu estado egoísta fez você ver tudo de forma depreciativa e ameaçadora. O inferno foi somente um reflexo de si mesmo e de suas próprias vontades.
Ondas de inafável felicidade fluem de seu corpo, esvaziando todo o egocentrismo que infectava seu ser. Entre lágrimas, envolvido pela luz divina, você se sente sendo iluminado pelo conhecimento que o verdadeiro amor significa sobrepujar o egoísmo e que não são os desejos mas o amor bastante abnegado que forma a ponte para o coração dos membros da nossa raça humana.
Então uma luz ofusca qualquer outro pensamento que você possa ter. Você abre os olhos. Sente-se renovado. Vivo. Amando pela primeira vez a vida que lhe fora concebida. Seu quarto continua do mesmo jeito de antes, levemente distorcido. Você quer abraçar o mundo. Amar todas as pessoas. Você é um novo ser. Seu ego morreu junto ao pesadelo.
Sua memória, agora recomposta, o faz lembrar que havia ingerido psilocibina a fim de contatar sua própria psique interior. Sua primeira experiência psicodélica o leva a uma compreensão que sempre o manteve cético; que além do mundo efêmero, material, também existe uma realidade imperecível, intocável, como se fosse o verdadeiro lar de todas as coisas existente. Aquilo lhe tira um arrepio que gela até a medula...